Hong Kong: Atrás das barricadas

Voluntários revezam-se em turnos de manhã, tarde e noite. Há vários postos de primeiros socorros. Uma “equipa de defesa”, equipada com walkie-talkies e apitos, patrulha a zona. Sabe quantos policiais estão no perímetro e onde. E está atenta a qualquer sinal de manifestantes antiocupação. O português Luís Simões está desde 29 de Setembro a fazer a cobertura ilustrada dos protestos em Hong Kong

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Luís Simões

O rosto cansado apoiado nos cotovelos enegrecidos. Já passa da meia-noite e William Chan ainda está entre amigos, em torno de uma mesa de vidro, junto aos serviços centrais do governo, em Admiralty, Hong Kong. Quando partirem, mergulhará no seu silêncio, na sua solidão, ainda que envolto nos sons do acampamento, e deitar-se-á no chão, enrolado num cobertor.

Há-de despertar às 5h45. Mora em Ho Man Tin, na península de Kowloon, a norte da ilha de Hong Kong. Faz uma viagem de metro e caminha uma meia hora até casa, montanha acima. Àquela hora encontra o pai, motorista de táxi, com a mãe, doméstica, e os irmãos, ainda pequenos. Toma um banho, veste-se, come qualquer coisa e corre para a escola. Tem de lá estar antes das 8h.

Dorme ao relento desde 28 de Setembro. Primeiro, deitava-se numa paragem de autocarro desactivada. Adormecia a ver e a ouvir falar outros. Sabia lá quanto tempo mais teria para os ver e ouvir. Supunha que dias. Volvida uma semana e meia, até um corpo de 16 anos implora descanso. Procurou sossego. E encontrou-o ali, junto ao edifício governamental, na esplanada abrigada do café.

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William Chan, de 16 anos, dorme ao relento desde 28 de Setembro Luís Simões

Naquele dia 28 de Setembro, estava em casa. Era domingo. Parou em frente ao televisor, indignado: estudantes da sua idade ou mais velhos, entre nuvens de fumo, usavam guarda-chuvas como escudo. A polícia lançava gás lacrimogéneo. Na véspera, já usara gás pimenta e detivera alguns dos estudantes que, no culminar de uma semana de greve, ali tinham ido reclamar “verdadeiro” sufrágio universal. Aquela luta também era sua. “Eu quero ter o direito de escolher o meu governo.”

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Luís Simões

Pequim prometeu que Hong Kong poderia eleger o chefe executivo por sufrágio universal em 2017. A 31 de Agosto, decidiu que o comité de nomeação terá de pré-aprovar os candidatos — dois ou três — e que o Governo da República Popular da China terá a última palavra a dizer sobre o eleito.

Precipitou-se para o epicentro dos protestos. O movimento cívico Occupy Hong Kong with Peace and Love, inspirado no Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, aliara-se aos estudantes e antecipara a campanha de desobediência civil que planeara para dia 1, o Dia Nacional. Em vez de dispersar, amedrontada com o gás lacrimogéneo, avolumava-se a multidão. De todo o lado parecia vir gente.

Depois daquele dia, nem a chuva, nem a ventania afugenta William. Muito lhe pedem amigos que durma numa das mais de mil tendas que, entretanto, foram montadas em frente, atrás e ao lado do Governo e do Conselho Legislativo, mas ele só por duas vezes cedeu — estava adoentado, se piorasse, teria de ficar em casa. Leva isto tudo muito a sério. Para ele, luta é sacrifício. Nem traz a guitarra de que tanto gosta. “Isto não é um recreio, é um espaço de debate sobre o que deve ser Hong Kong.”

William estava quase a nascer quando Hong Kong passou para a China, após 156 anos de administração colonial britânica. Sob o princípio “um país, dois sistemas”, foi-lhe atribuído elevado nível de autonomia — só as relações diplomáticas e a defesa nacional ficaram por conta do governo central. Tornou-se uma região administrativa especial. Deram-lhe 50 anos para se ajustar. Faltam 33.

O rapaz não se sente representado pelo chefe executivo, Leung Chun-ying, eleito com 689 votos por um comité composto por 1200 elementos de sectores-chave, como a indústria, o comércio e as finanças. “Por mais ricas e poderosas que sejam, essas 1200 pessoas não representam Hong Kong.” Leung parece-lhe demasiado próximo de Pequim. E essa intimidade assusta-o. É um susto partilhado nas ruas tomadas pelos manifestantes. Chamam-lhe 689. Desenham-lhe dentes de vampiro, chifres de diabo, nariz de Pinóquio, bigode de Adolf Hitler. Representam-no como uma marioneta, uma escultura de estilo soviético ou um lobo com a farda do exército vermelho.

Não quer que Hong Kong seja como qualquer parte da República Popular da China. “Se fosse, não havia este movimento [o ‘movimento dos guarda-chuvas’]. É por sermos relativamente livres que podemos protestar. Tenho medo de que essa liberdade desapareça. E por isso estou aqui todas as noites. Levanto-me, se não por um futuro brilhante, pelo menos, por um futuro não sombrio.”

Há muito quem, como Ho Lok Sang, director do Centro de Estudos de Política Pública da Universidade Lingnan, pense que William e outros estão a ir longe de mais. “Eles decidiram que certas ruas devem estar sem trânsito. Quem lhes deu esse direito? O valor central da democracia, pela qual dizem estar a lutar, é o respeito pela lei, o respeito pelos outros.” Gasta-se mais tempo na estrada. Ho tem uma filha deficiente e ela gasta mais meia hora entre a casa e o centro de ocupação.

A cidade pergunta-se, num murmúrio ou num rugido, até quando aquela forma de protesto se arrastará. Quem saberá responder? As posições parecem irreconciliáveis.

Ho e outros académicos pró-Pequim tentaram pontos intermédios. Cada candidato tem de ser aprovado por pelo menos metade do comité de nomeação. Alargando a composição do comité e reduzindo o grau de aprovação exigido, até os pró-democratas teriam hipótese de entrar na corrida. Pequim disse que não. Ho ficou desiludido, mas resignado: “Pequim quer ter a certeza de que quem exerce o cargo de chefe executivo não se opõe ao Partido Comunista, porque isso é importante para a estabilidade da China.”

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