Quanto vale um "extraordinariamente raro" e precioso atlas de 1468?

Vai ser leiloado um atlas de Gazioso Benincasa com ligação aos Descobrimentos portugueses. Só existem no mundo 58 atlas do século XV e este é um dos três que ainda estão nas mãos de privados.

Num dos fólios vê-se uma representação da Irlanda
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Num dos fólios vê-se uma representação da Irlanda Cortesia: Christie's
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Um importante e raro atlas marítimo assinado por um dos mais notáveis cartógrafos do século XV, o italiano Grazioso Benincasa (1400-1482), vai a leilão na próxima quarta-feira, dia 19, na Christie’s, em Londres. É um dos poucos registos que sobreviveram ao tempo, um dos poucos atlas da época em que vemos os Descobrimentos portugueses em África. Vale mais de 1,8 milhões de euros e já tem compradores interessados, revelou a leiloeira ao PÚBLICO. Em Portugal não existem trabalhos de Benincasa, “um dos inventores dos atlas”.

Desenhado à mão, há vários detalhes que fazem deste atlas da Europa e de África, de 1468, uma peça histórica e um dos escassos relatos da exploração portuguesa que chegaram até hoje, além de conter o mapa individual mais antigo da Irlanda, dando-lhe um destaque que até então não tinha. Motivos que levam Julian Wilson, especialista do departamento de Livros e Manuscritos da Christie’s, a não duvidar do sucesso do leilão desta semana.

“O mercado tem um interesse muito grande neste tipo de peças”, diz ao PÚBLICO, via email, o responsável da leiloeira, explicando que o atlas que agora vai à praça é um dos três do século XV que permanece em colecções privadas. “É extraordinariamente raro. Só 58 atlas do século XV sobrevivem e a maioria concentra-se no Mediterrâneo e não na exploração atlântica”, conta, revelando já haver compradores interessados no livro cujas estimativas de venda se situam entre os 1,8  e os 3,1 milhões de euros.

“Tem qualidade para um museu”, afirma Julian Wilson, contando que a peça nunca foi restaurada, a encadernação é a primeira e a única, e as cores continuam “frescas e vibrantes como no dia em que [a decoração] foi concluída”.

“Claro que é um documento muito importante”, diz Joaquina Feijão, responsável da área de Iconografia e Cartografia da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). “Por múltiplas razões, o interesse desta obra transcende o nível nacional e pode considerar-se um testemunho de grande importância para o património da humanidade”, continua, lembrando que este atlas “não foi produzido em Portugal, mas em Veneza, e [que] o seu autor é um notável cartógrafo Italiano”.

No entanto, Angelo Cattaneo, investigador do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar (CHAM), defende que, apesar de este conjunto de mapas ter sido produzido em Veneza, houve uma relação de Benincasa com Portugal, já que o italiano teve acesso a cartas náuticas e documentos da corte portuguesa. “É um objecto precioso que está claramente ligado aos Descobrimentos portugueses”, diz.

“Havia uma política de sigilo muito rigorosa em relação aos mapas e cartas de navegação. Que Benincasa seja capaz de executar graficamente África de forma tão precisa sugere que teve acesso à informação mais recente”, confirma Julian Wilson. “Será que ele teve acesso clandestino à informação secreta portuguesa?”, questiona o leiloeiro.

Cattaneo não tem dúvidas de que Benincasa “é um dos inventores dos atlas”. “As pessoas pensam normalmente num atlas como uma colecção de mapas mas não é só isso. O que Benincasa fez foi um relato mais completo das navegações, revela um passo mais em frente em termos de reflexão intelectual”, continua o investigador, explicando que o navegador e cartógrafo italiano mostrou que era possível acrescentar informação ao lado das representações gráficas. “O atlas permite que se acrescentem páginas. Parece simples hoje, mas na época foi uma novidade.”

Julian Wilson realça ainda a forma como Benincasa põe os mapas africanos na escala dos da Europa, “colocando a exploração africana no mesmo contexto do mundo europeu e destacando, portanto, a sua importância”. Quanto à sua vida na época, o especialista da Christie’s duvida que o atlas que agora vai a leilão tenha sido usado no mar, suspeitando mesmo, tendo em conta as ilustrações em grande escala e o trabalho elaborado, que tenha sido pensado para ser exibido. 

Não há um Benincasa em Portugal
Independentemente do uso no século XV, Angelo Cattaneo garante que esta é uma peça rara e importante, admitindo que o seu alto valor de base de licitação poderá impedir que venha para Portugal. “Até eu gostava de poder comprar”, diz, afirmando não conhecer trabalhos do navegador e cartógrafo italiano no país.

“Nas colecções da Biblioteca Nacional não existe nenhum atlas de Grazioso Benincasa”, diz Joaquina Feijão, referindo, no entanto, que na BNP e na Torre do Tombo “existem vários documentos, atlas e cartas portulano [mapas primitivos que ainda não dispunham de um sistema de coordenadas geográficas] da época dos Descobrimentos, designadamente de autores portugueses célebres, entre eles os atlas de João Teixeira Albernaz, Fernão Vaz Dourado ou Lopo Homem”.

“Curiosamente um desses atlas, que faz parte das colecções da Torre do Tombo, foi adquirido nessa mesma empresa leiloeira, em 1988, ao tempo pela quantia de 75 mil contos”, recorda esta responsável da Biblioteca Nacional de Portugal. “Mas, tal como se pode constatar na nossa mais importante obra de referência de cartografia portuguesa, Portugaliae Monumenta Cartographica, por vicissitudes várias da História, nem toda a cartografia portuguesa da época se encontra em colecções nacionais.” O célebre Atlas Miller, exemplifica, “de importantes cartógrafos portugueses, que é um dos monumentos da melhor cartografia da época, está integrado nas colecções da Biblioteca Nacional de França”.

Este tipo de atlas antigos, acrescenta Wilson, desperta tanto a atenção de coleccionadores privados como de instituições públicas. “Em 2012 a Christie’s de Nova Iorque vendeu um atlas portulano de Battista Agnese por 2,7 milhões de dólares [aproximadamente 2,2 milhões de euros]. Este atlas de Agnese continha 12 mapas e foi feito 75 anos depois do atlas de Benincasa, no século XVI”, conta, argumentando que os coleccionadores vêem estes primeiros trabalhos do século XV como um investimento premium. “Por isso, esperamos que este atlas se venda muito bem.” Quarta-feira saberemos.

Notícia corrigida às 12h19: Dia 19 é quarta-feira e não quinta-feira como inicialmente foi escrito.

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