Riachos, ribeiros e outros afluentes da revolução

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João Tuna

Este Museu é feito de sete palestras, sobre a ditadura, a revolução e o processo revolucionário, que abrangem mais de 80 anos de história, em cerca de quatro horas e meia, e que passam num piscar de olhos. Essa é uma das principais qualidades do espectáculo: dobrar e desdobrar o tempo, como se fosse maleável, para pôr a história à escala dos indivíduos, não dos heróis nem dos vencedores, mas de todo e qualquer um.

As palestras “performativas”, como lhes chama a autora e intérprete Joana Craveiro, dão a ver a variedade infinita de revoluções — clandestinas, à margem — que, vindas de tão longe quanto 1926, desembocaram no 25 de Abril e continuam até hoje, quais veios subterrâneos da liberdade, a alimentar o manancial de memórias e acções políticas em Portugal.

São sete estações da revolução, cujos títulos abrem a curiosidade: Pequenos Actos de Resistência, Arquivos Invisíveis da Ditadura Portuguesa (com fragmentos de uma oitava palestra, Sobre o Silêncio que Persiste), Português Entrecortado, Fragmentos de um Processo Revolucionário, Espantados de Regressar – História de uma família, Quando é Revolução Acabou? e Pós-memória. A diretora artística do Teatro do Vestido vai desemaranhando os fios destas palestras para revelar não um, mas vários novelos da história, que se ligam a cada um dos espectadores.

O lastro que a actriz traz para a cena, na forma de livros, documentos e entrevistas, é apresentado à luz da sua experiência pessoal. Nascida nos anos 1970, Joana Craveiro faz parte de uma geração de artistas de teatro que cresceu quando tudo era possível e amadurece num país oficialmente sem horizonte de expectativas. Essa contradição é imediatamente reconhecida pelos espectadores, quer sejam artistas de teatro ou não, dessa ou de outra geração, que sabem exactamente do que se está a falar.

A apresentação do material ao vivo constitui uma nova experiência pessoal para os presentes, performer incluída, que reconstitui o passado e revela o futuro. Se, como previsto, estiverem na sala testemunhas directas dos factos relatados, personalidades públicas ou não, o efeito da apresentação é exponencial. O lastro que cada um traga para a sala é posto em cima da mesa, e essa dádiva faz deste espectáculo um acontecimento cultural, como afirmou outro espectador, mais do que um mero momento de teatro. Ou talvez o teatro só seja teatro quando é um acontecimento cultural.

Ao longo de um serão longo que se poderia levar, com gosto, noite dentro, Joana Craveiro apresenta uma cornucópia de acontecimentos que só uma actriz no pleno uso das suas faculdades técnicas, criativas e políticas poderia fazer. Não se trata de um espectáculo panfletário nem sentimentalista graças ao sentido de humor, como frisou um espectador no debate que sucede cada apresentação. Antiautoritário por definição, este espectáculo é virado para o futuro.

“Portugal não será o Chile da Europa!” — gritava-se nalgumas das manifestações do Verão Quente de 1975, segundo se conta. De facto, não foi. Enquanto, em Santiago do Chile, a Villa Grimaldi, um dos centros de tortura de Pinochet, dá nome a espectáculos que se apresentam no próprio lugar dos crimes, em Lisboa, o edifício da rua Antonio Maria Cardoso onde milhares foram submetidos à tortura do sono é hoje um condomínio de luxo onde muitos dormem descansados, sem ouvir os fantasmas.

Na última palestra, pode ouvir-se uma popular, num vídeo das comemorações do 25 de Abril de 2014, lamentar alto e bom som, numa manifestação em frente à antiga sede da PIDE, ao Chiado: “E não houve ninguém capaz de matar estes cabrões!…” Esta e outras histórias podem ser contadas a partir deste espectáculo, que é um tesouro dado aos portugueses, capaz de furar a hegemonia das indústrias culturais, por um lado, e do teatro oficial, contestatário q.b., mas inócuo de mais, por outro. Este teatro novo — já não tão novo assim — é feito pelos que foram testemunhas inconscientes das revoltas dos anos 70 e entenderam já só os seus ecos em plena era Reagan. Da Argentina ao Brasil e ao Chile, de Portugal à Espanha e à Grécia, há um teatro que recupera das arcas o sentido da linguagem cénica para trocar histórias de liberdade com cada um dos seus espectadores.

 

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