Transparência sólida ou gasosa?

Tivemos, nos últimos dias, mais um terramoto na credibilidade do serviço público. Um conjunto de altos quadros do Estado foi indiciado pela prática de crimes que têm em comum a possível utilização das suas funções públicas de alto nível para benefício pessoal. Mesmo apesar de todos serem sempre inocentes até trânsito em julgado, as acusações assumem a gravidade extrema dos crimes de corrupção, tráfico de influências ou lavagem de dinheiro.

Todos aqueles que, até agora, têm sido referenciados estão abrangidos num já idoso e ultrapassado regime legal de incompatibilidades e de registo de interesses e de património que, do ponto de vista formal pareceria ser suficiente para não só limitar a prática de actividades fraudulentas como até de as detectar.

Não é assim. E não é assim desde há bastantes anos como é evidente. O sistema actual de depósito documental de declarações de rendimentos e de patrimónios não se coaduna com a transparência e eficácia dos sistemas de informação actuais. E à falência de um sistema antiquado de registo de interesses e de património somou-se agora um regime de atribuição de vistos gold com um potencial de corrupção ao qual não foram associados novos mecanismos de controlo eficazes e imperativos.

Ao se ter criado (e a meu ver muito bem) este novo regime de vistos gold não se foi capaz, por esquecimento, negligência ou desinteresse de associar alguns princípios que, não sendo sequer novos, poderiam ter feito toda a diferença especialmente quando as fragilidades deste novo regime aguçaram os apetites dos que vivem, e algumas vezes saltam, na fronteira entre o interesse público e os privados.

Sendo certo que o crime, e neste caso a corrupção, ultrapassa sempre as previsões legais há todavia muito a fazer na identificação das situações susceptiveis e potenciais de prática criminosa. E neste aspecto, o legislador português e a administração pública têm o trabalho muito, mas mesmo muito atrasado.

Não entrando na evidente necessidade de voltar a discutir (e mais que a discutir, a decidir) se a consequência do enriquecimento ilícito deve ser criminal ou apenas fiscal (mas que se decida e se aja em conformidade), recordo apenas um dos princípios constantes de uma recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção (a entidade administrativa independente que funciona junto do Tribunal de Contas e tem como fim desenvolver, nos termos da lei, uma actividade de âmbito nacional no domínio da prevenção da corrupção e infracções conexas), que aponta para a subscrição, por todos os decisores, de declarações de inexistência de conflitos de interesse relativamente a cada procedimento que lhe seja confiado no âmbito das suas funções e no qual, de algum modo, tenha influência.

Não será normal que, dessa forma, um membro do Governo, um deputado, um autarca, um director-geral, antes de tomar decisões concretas nos informe, a todos nós cidadãos interessados, da sua total, ou não, imparcialidade na decisão ou no processo em que vai intervir? Ou será que nos querem fazer crer que a transparência não pode ser conciliada com a eficácia?

Voltando a reforçar a ideia de que todos são sempre inocentes até trânsito em julgado transmito uma palavra de satisfação pela capacidade de actuação dos órgãos de investigação criminal não apenas perante crimes comuns e de mais fácil investigação e acção, mas também em situações muito mais sensíveis e de Estado. O nosso país precisa de sentir que o Estado funciona de acordo com os princípios do Estado de Direito.

Jurista

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