O hip-hop uniu-os (e não queremos que se separem nunca)

Quando se encontraram em 2010, pouco parecia uni-los. Quatro anos depois, não queremos vê-los separados. El P e Killer Mike são Run the Jewels. O hip-hop enquanto clássico instantâneo.

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Os Run The Jewels são El P e Killer Mike

O logótipo anda espalhado por todo o lado. Está nas paredes de Nova Iorque, Los Angeles, Antuérpia, Kuala Lumpur, Jeddah, Melbourne. O logótipo mostra duas mãos grotescas, uma com o indicador e o médio esticados, a outra segurando uma corrente de outro. Run The Jewels é o nome que o logótipo representa.

Killer Mike, rapper de Atlanta, antigo protegido de Big Boi, dos Outkast, dono de uma carreira a solo que, longe de discreta, nunca teve sobre si os holofotes da celebridade. El P, nativo de Nova Iorque, fundador da Def Jux, editora independente que nos trouxe Cannibal Ox, RJD2 ou Aesop Rock, rapper e produtor tão devoto do turbilhão sónico produzido pela Bomb Squad dos Public Enemy quanto da ficção cientifica neurótica, questionadora, de Philip K. Dick. Há seis anos, andavam perdidos. Killer Mike numa orgia de sexo e droga, a tentar “preencher o buraco deixado por um estrelato falhado”, como dizia à Pitchfork no mês passado. El P a alimentar-se de um cocktail de ecstasy, marijuana e álcool para tentar serenar a tensão de dirigir a Def Jux sem que os amigos que contratara perdessem dinheiro – perdia-o ele e perdia também o impulso criativo que não tinha tempo de explorar.

Isso foi há mais de meia década. Hoje, o logótipo dos Run The Jewels está por todo o lado. Hoje, contam como correu um dos primeiros concertos. Killer Mike subiu a palco, tocou durante meia hora e recebeu aplausos respeitadores. Seguiu-se El P e o mesmo cenário. Juntaram-se no final. Chegou mais gente, gente que sabia as rimas todas, e os aplausos tornaram-se mais entusiastas do que respeitadores. “Eles não gostam de Killer Mike ou de El P”, contavam entre risos à Rolling Stone, há dois anos. Eles, o público, gostam dos Run The Jewels. E isso diverte-os.

Aos 39 anos, dois heróis independentes tornaram-se super-heróis (independentes). Música densa, no exacto ponto em que o ataque directo e intenso, de beat bem medido, dos clássicos se encontra com as paisagens sonoras de El P, como que envolvidas na neblina húmida de Blade Runner – mas não é a distópica Los Angeles filmada por Riddley Scott aquilo que a neblina envolve: estamos no mundo contemporâneo, o nosso, convulsivo, violento, paranóico. Imersos nesse ambiente sonoro, Killer Mike e El P vão alternando as rimas, o primeiro no discurso extraído directamente da vida e do que a vida lhe ensinou, qual cronista do quotidiano, o segundo libertando o verbo em viagem interior, ele e os seus demónios em roda livre.

Juntos acabam de editar RTJ2, segundo volume do percurso iniciado enquanto duo no ano passado, data da edição do homónimo álbum de estreia. Generosos, querem que toda a gente os possa ouvir. Ambos os álbuns estão disponíveis para download gratuito no site do grupo (www.runthejewels.net). Nele, podemos também encomendar o CD ou o vinil, t-shirts e demais merchandise. E vemos disponíveis bizarros itens VIP.

Por 7.500 dólares podemos acompanhá-los nos bastidores de três concertos à escolha – podemos berrar com o tour manager, beber e comer do catering da banda e seremos apresentados a toda a gente como amigos do duo (porém, caso tentemos mostrar-lhes os nossos dotes de rappers, seremos expulsos sem direito a devolução do dinheiro). Por 150 mil dólares, acompanharemos os Run The Jewels a um restaurante à nossa escolha, com a banda a assumir o papel do chef celebridade Gordon Ramsay, humilhando o staff e tentando alterar os menus da casa. 40 mil dólares, por sua vez, dão direito ao pacote Meow The Jewels, pelo qual Killer Mike e El P se comprometem a regravar Run The Jewels 2 usando apenas sons de gatos.


Estes pacotes VIP são, naturalmente, uma piada. El P disse tê-los inventado charrado numa noite de tédio. Mas um miúdo iniciou uma campanha de crowdfunding para ver Meow The Jewels tornar-se realidade e, agora, El P anda a reunir miados no YouTube e a contactar para o ajudar gente como The Alchemist, Baauer, Just Blaze, Dan The Automator, Prince Paul, Zola Jesus ou Geoff Barrow, dos Portishead. A piada tornou-se realidade e Meow The Jewels irá mesmo acontecer – os lucros por vir serão doados a instituições de caridade. “Combater a injustiça com estupidez é a forma como estamos a olhar para isto”, declarou El P à Paste.

 

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Os Run The Jewels são muito sérios: a violência policial nos Estados Unidos, a impunidade dos que representam socialmente o 1%, a decadência física e moral vivida e imposta pelos traficantes na ruas, tudo isso é abordado sem subterfúgios em RTJ2. Mas os Run The Jewels são, também, uma força lúdica inestimável: são, aliás, exemplares na forma como aliam o lado negro da produção, com subgraves ribombantes e sons tétricos assombrando as canções (teclados, vozes sampladas, baixos distorcidos), a uma eficácia admirável. É música tão exigente quanto imediata, criada por dois homens aparentemente diferentes em tudo, com excepção ao amor pelo hip-hop e à partilha de 1975 como ano de nascimento.

Um, Killer Mike, nascido Michael Render, filho de um polícia, sobrinho de um dealer, é hoje um pai de quatro filhos que abriu uma barbearia na sua cidade natal, a Graffiti's Swag, para ajudar a pacificar Atlanta: “Atendemos a polícia, encorajamo-los a virem de uniforme e a interagir, porque não quero ver uma nova geração de miúdos com receio de falar com agentes. E quero que os polícias percebam que não são seguranças num zoo”, explicava à Clash depois dos casos recentes de mortes de adolescentes às mãos da polícia, nos Estados Unidos. Outro, El P, nascido Jaime Meline, filho de um funcionário de Wall Street e pianista jazz nas horas vagas que abandonou a família para viver livre das amarras do fato e gravata, é o artesão hip-hop que, depois co-fundar os Company Flow nos anos 1990, criou Fantastic Damage (2002), I’ll Sleep When You’re Dead (2007) e Cancer 4 Cure (2012), álbuns que lhe garantiram estatuto de culto pelo ambiente sinistro e pelo imaginário envolvente, ideal para nos perdermos no som de auscultadores bem colados aos ouvidos.

Quando se encontraram, Killer Mike tinha no seu currículo um êxito, A.D.I.D.A.S., extraído da sua estreia a solo, Monster (2003), e participações, por exemplo, no clássico dos Outkast Speakerboxx / The Love Below. Estávamos em 2010 quando El P, guiado por Jason Demarco, produtor executivo ligado ao Cartoon Network, se encontrou com Killer Mike. El P seria apenas um dos produtores do novo álbum de Mike. Acabaria a produzi-lo todo e, no fim, a comentar: “Não havia forma de imaginar que iria encontrar o meu melhor amigo aos 35 anos." Killer Mike, por sua vez, confessaria que, dali para a frente, não mais quereria trabalhar com outra pessoa.

El P e Killer Mike partilhavam afinal mais do que aparentavam. A idade, o humor, o crescimento com o hip-hop de NWA, LL Cool J ou Public Enemy, a existência à margem do grande estrelato e uma forma semelhante de olhar o mundo. Produzido R.A.P. Music, o álbum a solo de Killer Mike que os juntou pela primeira vez, decidiram que melhor seria passarem a assinar como duo. Em 2013 surgia de surpresa Run The Jewels. Os velhos fãs de ambos reagiram com entusiasmo ao encontro perfeito, novos fãs não demoraram a adoptá-los como banda preferida. Um ano depois, com RTJ2, onde encontramos Zack de La Rocha samplado e a rappar com intenção em Close your eyes (and count to fuck), ou Gangsta Boo, que surge a fazer o twist para destruir acusações de misoginia sobre Love again, os Run The Jewels estão em todo o lado. Nas paredes dos Estados Unidos, da Holanda ou da Arábia Saudita. Nas discotecas digitais de algumas centenas de milhar (as que já fizeram o download gratuito do álbum).

Surgem, em 2014, em destaque na consciência melómana. Acabaram de chegar e já são clássicos no seu tempo. Sabem de onde vêm e sabem onde estão. A sua música não engana. Vieram para ficar. 

 

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