As quatro vidas de Robert Wyatt

Vagabundo na adolescência, excessivo nos Soft Machine, reencontrado com a vida a solo e rejuvenescido nos anos 2000, eis as muitas vidas de um dos músicos mais fascinantes do nosso tempo. Agora afirma que não voltará a gravar. Mas há por aí uma nova compilação e uma biografia.

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RENAUD MONFOURNY

Ao longo de 50 anos de carreira, soube transcender as mudanças do tempo. Agora, aos 69 anos, o inglês Robert Wyatt diz que não voltará a lançar novos discos de originais. A saúde, a vontade de dedicar mais tempo à política e o processo moroso de criação dos seus álbuns são algumas das razões invocadas para parar.

Pode ser apenas uma forma de exílio do mundo. Em conversa com ele, em 2010, falava disso. “Tenho um amigo que diz que por vezes temos de nos exilar. Gosto dessa ideia aplicada à vida íntima ou quando nos relacionamos com o mundo em geral. Às vezes apetece fugir dos aspectos mais intoleráveis da existência. Já quando se vive no exílio podemos habitar em qualquer lugar e pertencer a qualquer lugar.”

Ele vive no centro de Louth, pequena vila no histórico condado do Lincolnshire, Leste de Inglaterra, na companhia da mulher e manager, a artista plástica Alfreda Benge, mais conhecida por Alfie. De vez em quando aparecem por lá alguns vizinhos do universo musical, como Brian Eno, Paul Weller ou Phil Manzanera. Até por isso é pouco crível que se retire.

Talvez não voltemos a ouvir um álbum de originais da sua autoria – o último, Comicopera, é de 2007 – mas haverá certamente colaborações no horizonte. Diz-se, por exemplo, que participará no próximo projecto do ex-Roxy Music, Phil Manzanera, cúmplice de anos.

Para já é notícia porque existe uma compilação dupla e uma biografia autorizada. O disco e o livro têm o mesmo nome – Different Every Time – e o responsável é o professor de música popular na Universidade Middlesex de Londres, Marcus O’ Dair.

Foi ele que escreveu o livro, em contacto directo com Wyatt, e que organizou a compilação cronológica agora editada pela inglesa Domino, a editora dos Arctic Monkeys, Franz Ferdinand ou Animal Collective, que tem sido a grande responsável por fazer chegar a música do inglês a novas gerações nos últimos anos. Um dos CD da compilação é uma das viagens possíveis à volta do seu percurso, embora faltem muitas das suas canções mais emblemáticas, enquanto o outro CD trata das suas colaborações, de Björk aos Hot Chip.

As obras literárias consagradas à sua vida e obra são escassas, pelo que constituiu uma descoberta ler sobre a juventude de Robert Ellidge, antes de ter adoptado o nome da mãe e quando começou a subir aos palcos. No livro, fica a ideia de que Wyatt passou por alguns períodos culminantes. A fase de descoberta na adolescência. A vida excessiva, como membro do grupo rock Soft Machine, que culminaria com o acidente que o deixou numa cadeira de rodas. E o percurso a solo.

Curiosamente na infância e em parte da adolescência, a pintura e a escultura, estavam entre os seus principais interesses, com o pintor suíço Paul Klee entre as preferências. A música só viria a surgir tempos depois. O pai, o psicólogo George Ellidge, que o levava à ópera e lhe dera a ouvir Duke Ellington ou Fats Waller, acabaria por não assistir à carreira musical do filho que inspirara, tendo morrido quando Wyatt tinha 18 anos. Três décadas depois, dedicou-lhe a compilação Flotsam Jetsam, escrevendo: “Para Georges Hargreaves Ellidge, músico, soldado, psicólogo e doido varrido. Sinto mais falta dele do que aquilo que consigo expressar.”

 

A sós, em grupo

Nessa altura, a sua vida assemelhava-se à de um vagabundo. “Ficava em diferentes lugares com uma grande mala com os meus pertences. Não eram muitos: escova de dentes, uma muda de roupa e o Porgy and Bess, de Miles Davis e Gil Evans”, diz ele no livro. “E não percebo porque é que, hoje, seria preciso mais.”

Depois vieram os grupos por onde passou, como baterista e também ocasionalmente cantor, nos Wilde Flowers, Soft Machine ou Matching Mole, todos eles, de formas diferentes, acabando por reflectir o mesmo tipo de influências: psicadelismos rock, estruturas complexas, grande investimento no som dos teclados, alguma folk pastoral e sentido de improviso do jazz. Os mais importantes foram os Soft Machine, dos quais foi fundador, ao lado de Kevin Ayres, na segunda metade dos anos 1960, tendo andado em digressão com Jimi Hendrix e privado com os Pink Floyd. Como o próprio Wyatt definiu em entrevista à revista Uncut, eram uma banda rock mas onde todos os membros ouviam jazz, daí que “a ideia de alongar as canções com improvisações fosse totalmente natural”.

Em 1971 saiu, formando os Matching Hole, com os quais lançou dois álbuns. A breve carreira terminou a 1 de Junho de 1973 quando, durante uma festa, e depois de ter ingerido bastante álcool, se atirou da janela de um terceiro andar. Esteve um ano no hospital, ficou paraplégico e condenado a andar de cadeira de rodas.

Há sete anos, em conversa com ele, dizia-nos que nesse período desmedido não havia desfrutado da vida – “Estava sempre bêbado. Não era grande coisa como pessoa. Agora sinto-me mais reconciliado com isto” – e que o acidente lhe proporcionara tempo para pensar. Em vez de tentar desesperadamente fazer coisas acontecer à sua volta rapidamente, viu-se compelido a pensar em ideias com mais calma.

Amadureceu formas de operar. Trabalhou a voz de forma diferente, começou a compor e a tocar vários instrumentos. Tornou-se inclusivo e foi assimilando ideias políticas de esquerda que nunca mais deixou. E foi assim que nasceu Rock Bottom, em 1974. Nick Mason, dos Pink Floyd, foi o produtor e, pela primeira vez, em vez de um grupo, Wyatt rodeou-se de vários músicos que iam satisfazendo as necessidades de cada canção, numa forma de operar que não abandonaria.

Esse álbum de 1974 é admirável, como o são Ruth Is Stranger Than Richard (1975), Dondestan (1991) ou Shleep (1997). Durante a década de 1980 e parte de 1990, porém, passou por fases difíceis, apesar de ser dessa altura a sua canção mais afamada, Shipbuilding.

Nos anos 2000 viu finalmente a sua obra enquanto todo ser reconhecida, ao mesmo tempo que lançava aqueles que são para muitos os seus dois melhores álbuns – Cuckooland (2003) e Comicopera (2007).

As suas canções nunca se fixaram numa tipologia (rock, jazz, pop, folk), podendo ser alvo de muitas leituras, mas nesses dois discos parecia ir ainda mais longe.

“A base daquilo que faço é herdeira do formato da canção pop, mas como se fosse tocada por músicos de jazz”, dizia-nos ele em 2007. “Criar uma canção é como seguir uma montanha de sons e tentar completar uma composição com eles, como se fosse um pintor, e no final, esperar que tudo funcione da melhor forma.”

Cuckooland era uma notável metáfora de um mundo cada vez mais dominado pela solidão, e Comicopera um fresco onde a existência mais privada e o conflituoso estado do mundo coabitavam no mesmo espaço de amor, perda, conflito, sonho e realidade.

 

Um mito

Ao contrário do que acontece em muitos outros campos criativos, como a literatura, as artes ou o cinema, na música popular, principalmente quando se vem do rock, a idade ainda parece ser estigmatizante.

A partir de determinada idade, parece que o público só espera que os músicos sejam capazes de gerir a sua carreira. Wyatt é um dos exemplos de que é apenas um mito. A sua actividade musical foi-se enriquecendo e tornando mais singular com a passagem dos anos. Não espanta que as novas gerações, progressivamente, o tenham vindo a descobrir. A islandesa Björk convidou-o para cantar em Medulla. Mas não foi a única. John Cage, Working Week, Ben Watt, Ryuichi Sakamoto, Scritti Politti, Ultramarine, Brian Eno, Anja Garbarek ou Hot Chip são apenas alguns dos nomes com quem foi encetando colaborações ao longo dos anos, algumas delas representadas na compilação. Em 2009, a francesa Orchestre National de Jazz gravou o álbum Around Robert Wyatt à volta do seu repertório; um ano depois saiu For The Ghosts Within, registado na companhia dos músicos Gilad Atzmon e Ros Stephen. Música sua não falta por aí.

Talvez por isso dizia, há uns anos, naquele seu jeito entre o lúcido e o divertido, que o mundo não necessitava de mais música. “Para quê? Já existe por aí tanta coisa que me deixa satisfeito, Charles Mingus, Gil Evans ou Stevie Wonder, para quê mais música?”

Talvez tenha razão. Mas nenhuma banda-sonora das últimas décadas fica completa sem Robert Wyatt. 

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