Odedra dança a quietude, Adamovic move-se na imaginação,

A 14 e 15, a Culturgest e o CCB recebem dois espectáculos de dança marcados por uma linguagem contemporânea em fuga da clássica. Ann Papoulis Adamovic, discípula de Merce Cunningham, traz uma peça de súmula. Aakash Odedra, seguidor de Akram Khan, apresenta uma obra iniciática.

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Em Rising, Aakash Odedra interpreta peças criadas expressamente para o seu corpo por coreógrafos como Akram Khan, Sidi Larbi Cherkaoui e Russel Maliphant LEWIS MAJOR
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Para Aakash Odedra, Rising foi um ponto de viragem: "Tive de levar a minha alma para um sítio diferente" LEWIS MAJOR
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Aakash Odedra, que nasceu Birmingham, foi treinado segundo a dança clássica indiana e tem uma invejável reputação de enquanto bailarino de kathak e de bharatanatyam LEWIS MAJOR
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Uma frase de Akram Khan é "a oração e o mantra" de Aakash Odedra: "Ensaio e repetição todos os dias" LEWIS MAJOR
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Com Mirage, Ann Papoulis Adamovic interrompeu uma longa ausência dos palcos
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A peça que Ann Papoulis Adamovic traz à Culturgest foi montada a partir de gravações de há 20 anos
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Ann Papoulis Adamovic foi discípula de Merce Cunningham antes de passar ela própria a dar aulas no estúdio do coreógrafo norte-americano

Chegada a Nova Iorque no início dos anos 80, Ann Papoulis Adamovic esperava confirmar e completar a sua transição de bailarina clássica para intérprete de dança contemporânea. E, pelo meio, encontrar um sentido nisto, deixar um mundo relativamente seguro e encontrar um lugar no meio de uma profusão de possibilidades. No dia em que pôs os pés no estúdio de Merce Cunningham, largou as restantes investidas. Percebeu, antes de mais, que Cunningham defendia que todas as histórias que podiam ser contadas em palco estavam já impressas no corpo, cabendo a cada bailarino mergulhar nelas e trazê-las à superfície. “A Martha Graham queria contar uma tragédia grega e fazia coisas incríveis com o corpo”, compara Adamovic ao Ípsilon. “Mas o Merce, que também dançou com ela, divergiu completamente disso e dizia que não temos de começar pela história, podemos começar pelo corpo. Foi isso que ele radicalizou no mundo da dança – retirou de cena a necessidade da história.”

Foi quanto bastou para Ann Papoulis meter os papéis para se divorciar do mundo clássico. “Senti uma liberdade total para explorar e compreender a profundidade da minha fisicalidade naquelas aulas”, recorda a bailarina e coreógrafa, figura de referência para a nova dança portuguesa, graças às suas apresentações e aulas em Portugal no final da década de 80. Os ensinamentos de Cunningham continuam perfeitamente activados agora que a criadora põe fim a uma longa ausência dos palcos e mostra na Culturgest (próximos dias 14 e 15) Mirage, peça que inclui vídeo, música e dança, e que Adamovic diz habitar cada vez melhor, desde que terminou o processo de composição coreográfica no final de Agosto.

Cunningham, o mestre, vem de novo à baila quando explica que uma das suas grandes lições viera mascarada de advertência: “A maioria dos bailarinos chega a um ponto em que aprende os passos e sabe a sua sequência, e convence-se de que o processo se finaliza aí, que a dança está encontrada. Mas esse é verdadeiramente o ponto de partida, é daí em diante que chegamos à profundidade dos movimentos.” A ligação entre os dois rapidamente se solidificou então, ajudada igualmente pela convicção de Cunningham de que a dança beneficiava ao tornar-se amante da música e das artes visuais, áreas em que Ann Papoulis tinha já formação consistente (música) ou interesse desperto (artes visuais). Em 1983, aos 23 anos, inebriada e impregnada daquele mundo, passava a dar aulas no estúdio do coreógrafo.

Figura emergente da dança britânica, também Aakash Odedra, que actua nos mesmos dias no Centro Cultural de Belém, fez a transição para a dança contemporânea depois de descobrir o seu mentor – Akram Khan. Nascido em 1984 em Birmingham, Aakash foi treinado segundo a dança clássica indiana, conquistando uma invejável reputação enquanto bailarino de kathak e de bharatanatyam tanto no Reino Unido como na Índia. “Só que chegou uma altura em que precisava de cortar e de me distanciar daquilo que fazia e com que me sentia confortável”, conta. “Precisei de me sentir à beira do precipício, de me sentir inseguro e de me forçar no sentido de encontrar algo novo.” Esse algo novo, admite, tanto poderia tê-lo projectado na direcção de uma nova relação com a dança como empurrado para uma carreira de veterinário ou de guarda-florestal. Rising, conjunto de quatro coreografias que estreou em 2011 (uma das quais da sua autoria), representa precisamente esse momento de emancipação, de assunção de uma vida nova.

Um dos principais ensinamentos de Akram Khan – um dos três coreógrafos convidados por Odedra a criarem as peças que compõem Rising –, ainda assim, reporta-se à recusa liminar do abandono dos alicerces da tradição. “Ensaio e repetição todos os dias – é a tua oração e o teu mantra”, foi essa a frase que não se cansou de dizer até ficar gravada no espírito de Odedra. E essa repetição, dizia-lhe ainda Khan, deveria começar sempre pelo padrão básico de kathak que se aprende na primeira aula: é a partir da forma mais simples que é possível construir outros caminhos, arriscando sem perder o sentido de orientação, a referência mais elementar. A par de Khan, Rising põe ainda na pele de Odedra os movimentos de Sidi Larbi Cherkaoui e de Russell Maliphant – “o equivalente na dança a um evento de passadeira vermelha”, chamou-lhe a crítica de dança do Guardian Judith Mackrell. “Foi através destes três coreógrafos”, agradece Aakash, “que aprendi uma nova relação com o espaço, com o tempo, com o chão, com tudo à minha volta. Foi um ponto de viragem para mim – tanto física como espiritualmente. Tive de levar a minha alma para um sítio diferente.”

 

Ventoinhas e tatuagens

Há mais de 25 anos a separar os movimentos de busca de Adamovic e Odedra. Partindo de tradições clássicas, ambos sentiram o apelo de se sintonizar com o seu tempo e quiseram ver o corpo habitado não apenas pelo passado, mas sobretudo pela vertigem do desconhecido. O ponto em que agora se apresentam em Portugal é, naturalmente, distinto – Adamovic numa peça de súmula, Odedra num conjunto de peças iniciáticas. Aakash chega também num momento de entusiasmo febril com os seus novos caminhos, que descreve como algo totalmente inescapável. Para isso, serve-se do exemplo do salmão: “O salmão vai para o mar e sempre que tem de se reproduzir sobe o rio e volta para o sítio onde nasceu. Há uma urgência e uma energia dentro de mim que me empurram a mover-me numa certa direcção, mas não sei porquê, tal como o salmão que sabe apenas que tem de ir por ali para criar uma nova geração. Tento seguir o meu instinto e muitas vezes sinto que estou louco porque não o percebo, mas no final alguma coisa resulta disso.”

O instinto em Odedra passa por deixar que o movimento flua com a mesma naturalidade com que respira ou caminha – daí que afirme ser incapaz de esquecer totalmente a sua formação nas danças clássicas indianas, uma vez que foi com elas que aprendeu a dar os primeiros passos e contaminam-lhe necessariamente o andar. Apesar de, em casos mais recentes, ter trabalhado a partir de abordagens temáticas à dislexia (de que sofreu em miúdo, tendo encontrado na dança um meio de expressão privilegiado) ou à escarificação e às tatuagens, a sua motivação passava mormente por encontrar disposições no interior das quais se pudesse mover. “No caso de Murmur [concebida com Lewis Major e tomando a dislexia por mote], quis criar uma realidade alternativa, que existe na mente, por isso estão 14 ventoinhas em círculo e eu danço apenas dentro do círculo para criar uma restrição mental”, explica. Em Inked [criação de Damien Jalet], interessava-lhe “explorar as motivações por que as pessoas fazem tatuagens, do amor à separação e à carga ritualística”. “A minha avó estava toda tatuada – os braços, o pescoço, os pés, é um costume da minha casta, dos guerreiros. E na última imagem que guardo dela estou a segurar-lhe a mão quando morreu. Tinha a mão coberta de tatuagens e a mente vazia. Quis reviver isso ou lembrar aquilo que ela significava para mim.”

 

Salvação pela imaginação

Apesar dessas intromissões conceptuais, Aakash afirma que o que mais o fascina é criar, "dentro do movimento, um instante de quietude”. “Estou sempre a mover-me e a pensar para chegar a esse instante de quietude.” Essa ideia do que acontece ao movimento quando é colocado em suspensão, como se chega até lá e o que lhe pode suceder, encontra-se, embora numa perspectiva diferente, também em Mirage, de Ann Papoulis. Num dos 17 segmentos da peça, a coreógrafa e bailarina foi filmada em Nova Iorque, imóvel, no meio da rua, com pessoas a passar, enquanto o seu olhar não se desvia da câmara. “Estava a habitar outra dimensão e as pessoas que passavam à minha volta estavam na sua vida quotidiana, em movimento, e ninguém reparava em mim. Em Nova Iorque as pessoas não reparam em nada, pode andar-se na rua completamente nua e mal olham para nós.” Mas o propósito da artista não passava por ser notada. Aquilo que pretendia era abrir uma fenda na realidade, criar um plano coexistente de transcendência sem qualquer interferência naquilo que a rodeava. “Era uma metáfora para todo o trabalho que estou a fazer”, esclarece. “Temos a vida quotidiana, mas lá dentro há qualquer outra coisa. É isso que tento tocar com a minha obra.”

Mirage foi montada a partir de gravações realizadas há 20 anos por uma cineasta eslovena que acompanhou a coreógrafa por todo o mundo e deixou um documentário por concluir. Há um par de anos, Ann Papoulis percebeu que tinha material para preparar uma performance. Acrescentou novas filmagens, juntou-lhe um lado musical que a coloca entre Laurie Anderson e Diamanda Galás, e criou novos movimentos e novos monólogos. Tudo guiado por “um ponto de vista conceptual e artístico sobre a dimensão poética da vida” a que diz aspirar. “Aquilo que me define está dentro da minha imaginação.” E a imaginação, acredita, é a tábua de salvação para a humanidade. Ann Papoulis, como se calcula, já por lá enrodilhou o seu corpo.

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