O João dos "mil ofícios" que não consegue viver disso em Portugal

Criou uma editora com apenas 25 anos, mas rapidamente percebeu que em Portugal “não se vive de livros”. Emigrou para Inglaterra, depois para a Suécia, depois Noruega. Tem uma licenciatura e fala seis línguas, mas só arranjou trabalho em armazéns e como cozinheiro. João Reis publicou agora o seu primeiro livro — mas está em vias de emigrar novamente

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João Reis tem 29 anos e acabou de publicar o seu primeiro livro Tiago Dias dos Santos
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João Reis tem 29 anos e acabou de publicar o seu primeiro livro Tiago Dias dos Santos

Quaisquer manuais de boas práticas para quem quer ter sucesso profissional lhe diriam que estava no bom caminho: concluiu uma licenciatura, mostrou espírito empreendedor ao criar um emprego próprio, especializou-se em áreas pouco ou nada exploradas em Portugal. O que os manuais de boas práticas não disseram era que tudo isso podia não chegar — e que num país e num continente em crise a história tem frequentemente desenvolvimentos imprevistos. João Reis entra nas estatísticas de que ninguém gosta de falar: de portugueses formados que não encontram emprego no país e que decidem emigrar mas, mesmo fora, só encontram trabalho não qualificado.

O P3 cruzou-se com João Reis no início de 2012, dois anos depois de o jovem ter criado com a irmã, Natália Reis, a Eucleia, a editora dos mais jovens editores do país — na altura, ela com 23, ele com 27. Dois anos depois, retomamos este conto, “talvez revelador do estado da Europa e do emprego jovem”, diz o próprio. A história da vida de João não é só a história dele: “Isto aqui não dá nada. Ou estava em casa dos meus pais a vida toda ou então tinha de emigrar. As pessoas novas estão todas a ir embora, uma pessoa começa a sentir-se sem saídas”, disse ao P3 o jovem de 29 anos, que está em Portugal actualmente mas que prevê emigrar novamente caso não encontre um emprego até ao fim do ano.

João Reis sabia que criar uma editora e viver dos livros em Portugal era um sonho distante. Mas o cenário com que se cruzou foi bem pior do que aquele que imaginava: distribuidoras que entravam em falência, livrarias que não pagavam ou o faziam atrasado. A crise foi provavelmente a grande responsável por este desfecho, mas não foi só por ela que os irmãos Reis desistiram: “As pessoas não nos levavam a sério por sermos novos, diziam-nos que não tínhamos experiência e não nos apoiavam. Concluímos que não havia público e chegamos a um ponto em que estávamos a trabalhar para ninguém.”

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O jovem traduz as quatro línguas escandinavas

Em Maio de 2012, João partiu para Inglaterra, onde a namorada já estava a trabalhar, e a Eucleia, entregue à irmã, acabaria por ser vendida, em Novembro de 2013. Mesmo fora do país, os três anos de frequência do curso de Medicina Veterinária, a licenciatura em Filosofia e as seis línguas que domina, de pouco lhe valeram na hora de encontrar um emprego: “Fui para um armazém de vinho, eu que nem bebo”, ironiza. O “trabalho muito pesado” valeu-lhe menos dez quilos em seis meses e as 6,8 libras que ganhava à hora acabaram por não falar mais alto. “Chegou uma altura em que não dormia com as dores no corpo, desisti por incapacidade física.”

A história repetiu-se, com poucas nuances, por mais duas vezes: primeiro na Suécia e depois na Noruega, João Reis encontrou um emprego relativamente bem pago, mas fora da sua área de formação. “Ficava com aquilo que eles não queriam apenas”, lamenta. Nos dois países trabalhou como cozinheiro — ainda que seja vegan e que a sua experiência na cozinha fosse diminuta. Na Suécia fazia viagens de duas horas e meia para chegar ao emprego e nas viagens, “a cair de sono”, fazia as traduções e revisões que ia conseguindo. “Nunca deixei de procurar na minha área, mas sem sucesso. Digo que sou licenciado em Filosofia, mas para eles é igual a nada, nisso Portugal não é um caso isolado. Se disser que sou tradutor também não ligam muito.”

“Super-especialização” inglória

João traduz as quatro línguas escandinavas — sueco, norueguês, dinamarquês e islandês. E isto não é coisa pouca: “Há muito pouca gente em Portugal a fazê-lo, de islandês acho que sou mesmo o único.” O jovem portuense começou por aprender sueco com um curso na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e depois com aulas particulares. A partir daí, o domínio de norueguês e dinamarquês tornou-se “fácil”. O islandês já é um caso bicudo: “É quase nórdico antigo. Aprendi através de aulas na Internet, mas só domino a parte escrita.” A “super-especialização” não lhe tem servido de muito: “Fiz tudo o que dizem para fazer, domino uma coisa invulgar. Até a trabalhos de tradução da União Europeia já me candidatei, mas não tenho tido sorte”, lamenta o editor, que além destas línguas domina ainda o português e inglês e arranha espanhol e francês.

A mágoa de João Reis com Portugal é evidente e, de fora, os defeitos de um país com 1,2 milhões de desempregados (números do INE no final de Setembro) e 128 mil pessoas emigradas no ano de 2013 parecem ainda mais nítidos. O que falta a Portugal? “Acima de tudo civismo. E patriotismo. Eu queixo-me mas quando vou para o estrangeiro não achincalho Portugal, pelo contrário, tento falar das coisas boas. E patriotismo não é pôr bandeiras na janela quando Portugal joga, é tentar que o país seja melhor.” As previsões que faz para o país não são as mais optimistas: “Vejo as pessoas novas a irem embora... As novas gerações em termos de educação estão ao nível da Europa, mas em civismo acho que ainda ficam atrás. Isso nota-se em várias coisas — na estrada, por exemplo, na forma como tratamos os animais.”

Recentemente, João Reis publicou “Os Quatro Ponto Corporais”, na editora Coolbooks (4,99 euros), que pertence à Porto Editora. “Não é o primeiro livro que escrevo, mas é o primeiro que publico. A linha mais literária não consigo publicar em Portugal, esta é uma vertente mais comercial que fiz para atrair a atenção de grandes editores”, admite, contando que esta primeira publicação é “um livro de acção, policial, com humor negro”.

Balanço da vida de escritor-editor-revisor-tradutor: “Não se pode viver disto, de maneira nenhuma”, diz, revelando que as traduções são pagas a cerca de 8,5 euros por página. Para já, João está em Portugal a aguardar uma resposta de um potencial emprego numa nova editora — mas a espera prolonga-se há já alguns meses. “Se até Janeiro não tiver resposta vou sair de novo, tentarei o Canadá.”

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