“Em casa onde não há pão...”: o filme do financiamento do cinema português

Caso o cinema português não usufruísse do apoio do Estado e tivesse sido antes deixado à mercê das leis da procura e da oferta, provavelmente não existiria de todo

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Daniel Rocha

De quando em vez, o cinema português acaba por protagonizar ele próprio um filme. As demissões na SECA por causa dos júris escolhidos para a atribuição de financiamento é apenas o mais recente episódio de uma maquiavélica saga de jogos de poder. É mais sôfrega do que o "Senhor do Anéis", mais duradoura do que os 50 anos do "007" e mais tortuosa do que o mais rocambolesco produto da imaginação de Shakespeare.

Questões desta natureza remontam a tempos idos e a histórias antigas: processos obscuros, ódios figadais e posições inconciliáveis entre pessoas do meio artístico, burocratas, a "mens legislatoris" e gente do capital. São diferentes forças concertadas, propulsionadas por enquadramentos mentais e objectivos diferentes, a tentar puxar o poder decisório sobre o cinema para quadrantes antagónicos.

Talvez seja útil mencionar que o cinema português, como o temos vindo a conhecer, tem funcionado em grande medida em contraciclo. Por outras palavras, caso o cinema português não usufruísse do apoio do Estado e tivesse sido antes deixado à mercê das leis da procura e da oferta, provavelmente não existiria de todo.

No seguimento das conquistas e da notável capacidade organizativa do grupo do Cinema Novo, o cinema com pretensões artísticas foi consolidando poder e influência ao longo dos anos, através de vários meios, personalidades e instituições. Poder-se-á dizer que foi a prática privilegiada por um momento histórico. Entende-se. Tendo em conta a sua especificidade, num quadro de opção política de subsidiação parece fazer mais sentido apoiar um cinema deste género do que outro, mais popular e "teoricamente" mais atreito a melhores resultados de bilheteira.

"Grosso modo", desde 1971 que assim é: a sucessiva legislação, de forma mais ou menos (in)operante, tem assegurado a distribuição de fundos que têm evitado o colapso de um sector que nunca alcançou ou almejou qualquer autonomia financeira. Tem sido possível a continuidade do trabalho de um punhado de realizadores e o início de carreira de alguns outros. Porém, este mecanismo não é de todo isento de problemas, uma vez que envolve decisões em torno do sempre subjectivo mérito artístico dos projectos e daquilo que ideologicamente se quer que o cinema seja ou deixe de ser.

Desde os anos 90 que os abalos no meio têm sido significativos, nomeadamente porque os grupos privados, suportados pela sua popularidade, começaram a constituir uma alternativa e uma oposição séria ao "statu quo" que o cinema artístico tem mantido. Talvez mais do que nunca, este cinema em Portugal assiste ao drama da rápida transferência do seu peso para o outro prato da balança. A roda roda. À mudança do tempo histórico correspondem novas escolhas. Há hoje uma geração emergente, com diferentes ambições para o cinema português, que desafia o velho/corrente paradigma. A questão é que este poderá ser um caminho radical e sem retorno, pois dificilmente haverá no futuro uma conjuntura de novo favorável às práticas mais independentes e autorais de cinema.

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