Então, era assim…

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Há muitos anos, que não são assim há tantos, havia no Porto uma raça dura de mulheres a que se chamavam “as carquejeiras”. Estas mulheres, pobres, todas elas, passavam os dias curvadas sob molhos de carqueja, que transportavam, calcorreando a cidade, de um velho cais na curva do rio Douro até às padarias e casas senhoriais, que se serviam da carqueja para alimentar os fornos e lareiras. A viagem começava não muito longe da Ponte Luiz I e podia levá-las tão longe quanto a Foz ou Paranhos, mas o caminho mais duro, mais impensável e criminoso que tinham de percorrer começava mesmo ali, aos pés do cais, e era a Calçada da Corticeira.

São só cerca de 220 metros, mas são uns 220 metros dignos de uma descida aos infernos. Ou melhor, de uma subida, porque a calçada é assim, indecentemente íngreme, desnivelada, de pedras irregulares, armadilhadas para tropeções. A via é tão íngreme que fazer um carro puxado por animais seguir por ali acima era tarefa quase impossível, pelo que se recorria às mulheres. Elas, sim, curvadas, muitas vezes com os filhos pequenos agarrados às saias, carregavam até 50 quilos de carqueja. Uma vez e outra e outra.

Era tão duro e marcante este trabalho que a Câmara do Porto, não há muitos anos, decidiu mudar o nome à calçada, passando a designá-la por Calçada das Carquejeiras. E confesso já aqui: mesmo sem carregar qualquer peso, não tive ainda coragem de a subir. Se a alternativa era subi-la ou descê-la, preferi a última, ainda que tenha dado graças ao sol que deixava o piso seco, já que há boas (ou deveria dizer péssimas?) probabilidades de escorregar por ali abaixo, em dia de piso molhado. Mesmo com sol, senti que accionava um travão interno a cada passo, para não cair.

Lá em cima, junto ao Passeio das Fontainhas, a calçada anuncia-se com a placa verde que lhe dá o nome. Há uma funcionária de limpeza municipal que vai tentando dar alguma ordem ao caminho velho — não me lembro de outro no Porto com um ar tão antigo — e não posso deixar de reparar que, como eu, prefere descer a calçada, enquanto varre a apanha algum do muito lixo espalhado por ali.

O Douro acompanha todo o trajecto, primeiro sem barreiras entre o nosso olhar e as águas, depois com uma vedação de arame ferrugento, onde o muro de protecção não é muito mais alto do que uma criança. Há lixo e casas velhas a acompanhar o caminho até à Avenida de Gustave Eiffel. Há um fogão velho, depositado no beira da calçada, ossos abandonados por algum cão no meio do caminho, alguns murais bonitos a quebrar a paisagem, gatos sem vergonha espojados ao sol. Mas o que mais se destaca na Calçada das Carquejeiras são as suas pedras. Pedras largas e mais pequenas, que não assentam todas da mesma maneira e que já foram pisadas por não sei quantos pés.

Alguém devia cuidar para que este caminho, onde só se passa a pé ou, se houver coragem para tanto, em duas rodas, nunca desapareça e mantenha estas pedras gastas e antigas como memória de uma cidade que não desapareceu assim há tanto tempo.

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As carquejeiras já causavam espanto e críticas no início do século XX e em 1930 um repórter do jornal O Século, enviado de Lisboa ao Porto para contar como se vivia nas ilhas da cidade, impressionava-se com as carquejeiras. “As desgraçadas passam, com os enormes feixes às costas, arfando e resfolegando, pela ladeira acima. Assisto à escalada torturante dum calvário que não tem fim. Sobre os muros da rampa, os ouriços humanos depõem, de vinte em vinte metros, os carretos”, descrevia ele na altura.

Uma destas mulheres talvez fosse Palmira de Sousa. A última carquejeira do Porto contou a sua história ao projecto Memórias do Trabalho, da Universidade Popular do Porto. Está lá descrito como seguiu as pisadas da mãe, também ela carquejeira, começando a carregar os pesados fardos, calçada acima, a partir dos dez anos.Nascida em 1912, Palmira levava já oito anos de experiência como carquejeira quando o repórter de O Século foi ver os pobres ao Porto.

Parece tudo tão distante, mas Palmira morreu apenas este ano, com 102 anos de idade. Sobreviveu ao marido violento, aos muitos filhos que perdeu, à sua primeira profissão. Morreu em Setembro e, desde então, no Porto, já não há carquejeiras para contar como foi. Ficou a calçada. E, lá de baixo, dá medo olhar para cima e pensar que se vai escalar tal declive. Mesmo sem sermos “mulheres de carga”. Ainda não é hoje que me atrevo a tanto.

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