A televisão segundo Roberto Rossellini

O projecto rosselliniano de construir uma grande enciclopédia filmada em destaque no Lisbon & Estoril Film Festival.

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Sócrates de Rossellini

Face àquilo em que a televisão maioritariamente se tornou, em Itália e um pouco por toda a parte, ainda mais louco e “desadequado” parece, hoje, o grande projecto de Roberto Rossellini a partir dos anos 60: construir, para a televisão, uma espécie de grande enciclopédia filmada, que tratasse a história da humanidade e das suas ideias mais decisivas.

Esta parte da sua obra – que é praticamente tudo o que ele filmou entre 1965 e 1977, ano da sua morte – vive hoje numa relativa obscuridade, e raras são as hipóteses de ver estes filmes em sala de cinema, o espaço que eles merecem porque obviamente são muito mais parecidos com aquilo que o cinema foi do que com aquilo que a televisão é e será. Depois da retrospectiva Rossellini organizada pela Cinemateca em 2007, o Lisbon & Estoril Film Festival 2014 oferece nova oportunidade de ver os filmes televisivos do mestre italiano, no que é um dos pontos altos do festival.

À época, Rossellini, que continuava a ser um dos grandes nomes do cinema mundial, defendeu e sustentou, até por escrito, as suas razões e os seus objectivos. Estava farto do cinema, das obrigações do cinema, dos critérios de recepção do cinema, e mesmo a tradicional dicotomia (“arte” versus “comércio”) lhe era indiferente, porque para ele ambos os termos, a arte e o comércio, se inscreviam na mesma ordem de futilidade.

A televisão, relativamente nova, parecia-lhe um território cheio de possibilidades, o meio ideal para ser convertido em “ferramenta”, em instrumento ao serviço do saber e da pedagogia. Do projecto resultaram duas grandes séries (que não vão ser mostradas: A Idade do Ferro e A Luta do Homem pela sua Sobrevivência) e cerca de uma dezena de filmes avulsos ou mini-séries. Que no conjunto, pelas persistências temáticas, formam também uma grande série.

Fora o magistral A Tomada do Poder por Luís XIV, que inventa o filme histórico “moderno” (dias 9 e 15 sempre no Monumental), Rossellini escolheu filmar figuras da história do pensamento (Descartes, dia 11 no Monumental, ou Blaise Pascal, dias 13 e 15 na mesma sala) ou da religião cristã (O Messias, dia 10, e Agostinho de Ippona), sem dúvida porque lhe interessava vincar o continuum entre a filosofia e as ideias religiosas.

Não há, necessariamente, “identificação”: Rossellini filma estruturas narrativas ficcionais com a distância justa (e prodigiosa) para que sobressaiam as ideias, escoradas nos textos históricos que as suportam. Talvez só no belíssimo Sócrates (dias 12 e 15) esse passo seja cruzado, e Rossellini se “projecte” no filósofo grego, nas suas preocupações pedagógicas e na busca de uma verdade para além das paixões e das futilidades. Como é óbvio, é para não perder nenhum destes filmes.

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