“Na Catalunha há mais gente do que o normal que chora pela política”

O jornal Ara nasceu em 2010, quando os diários generalistas já tinham sido declarados mortos, e ainda não parou de crescer. Os seus leitores associam-no com o actual processo soberanista catalão.

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Pins pró-independência da Catalunha Albert Gea/Reuters

Ainda não fez quatro anos e já é o terceiro jornal que mais vende em banca na Catalunha, o segundo mais lido em catalão e o segundo com mais influência no parlamento autonómico, onde ultrapassou o El País e só está atrás do La Vanguardia. Na Internet, onde é líder de visitas, tem já 28 mil assinantes. Esta é a história de um jornal que nasceu fora de tempo e cujo êxito não se entende sem se olhar para a vida política catalã dos últimos anos.

Não há falta de jornais na Catalunha: para além dos líderes nacionais, El País e El Mundo, ou do La Razón (muito conservador, sexto a nível nacional), existem vários diários regionais – El Periódico, La Vanguardia, El Punt Avui (ex-Avui) – para além de inúmeras publicações locais e de sites com muitos visitantes, como o VilaWeb, fundado em 1995, que é um dos primeiros jornais digitais do mundo.

O espaço público em catalão não tem parado de crescer: no início de Outubro, foi a vez do El País lançar uma edição digital em catalão, 32 anos depois de ter começado a imprimir páginas semanais na mesma língua. “Porque se tratava então, e hoje ainda mais, de uma realidade linguística potente e tangível, especialmente protegida pela Constituição; e porque fomentar a língua catalã responde a uma orientação oriental do novo jornal em favor de uma Espanha plural e diversa, em que a cidade de Barcelona exerce um papel de co-capital económica, cultural e também política indiscutível com Madrid”, explicou o diário em editorial.

A oferta em catalão já era muito grande em 2010. “Fazia era falta um jornal que rompesse com o statu quo, que tivesse um olhar diferente. Um jornal com menos passado, menos inércias acumuladas, mais agilidade e menos complexos”, diz Salvador Garcia Ruiz, “leitor desde o primeiro dia” e desde há ano e meio conselheiro de estratégia do Ara (Agora, em catalão).

O Ara nasceu com redacções integradas, onde os conteúdos multimédia são tão importantes como os textos e toda a gente escreve primeiro para a edição digital o que depois será publicado em papel. Começou com 70 pessoas, uma equipa formada por veteranos mas com uma maioria de gente jovem; hoje são 110. Mas nasceu num momento particular, meses depois da grande manifestação de 2010 contra o chumbo do Estatuto da Catalunha pelo Tribunal Constitucional.

Este chumbo é fundamental para perceber a vaga de independentismo actual e a consulta que este domingo terá lugar. O estatuto que melhorava a autonomia catalã e que foi aprovado no Congresso espanhol e referendado pelos catalães, foi levado à justiça pelo Partido Popular (então na oposição, hoje no poder, em Madrid). O Constitucional declarou ilegais uma série de pontos e muitos catalães iniciaram aí o seu divórcio com Espanha.

Quando aconteceu essa manifestação, no Verão de 2010, já jornalistas como Ignasi Aragay, director adjunto do Ara, com 20 anos de experiência no Avui, tinha pedido a professores de jornalismo de toda a Catalunha para lhe enviarem os nomes dos seus melhores alunos. Trezentos fizeram provas e passaram a 50 dos quais se escolheram 25. “Não queríamos só bons alunos, queríamos miúdos com actividade cívica, social, que tivessem trabalhado ou viajado, que soubessem línguas”, explica Aragay, que formou esses jovens ao longo de vários meses.

Pensar o país
Entre-se na redacção quase toda branca do Ara e a juventude é uma das características que saltam à vista. Também há mais homens do que mulheres. E uma pequena estelada, a bandeira independentista catalã com o triângulo azul e a estrela branca no meio, que alguém pousou em cima de um armário.

Já passa das 17h e há muita gente a falar com muita gente, editores de pé, atrás das secretárias dos jornalistas, directores sentados e de pé em redor de uma pequena mesa redonda a olharem para possibilidades de primeira página. No centro, há um balcão em meia lua atrás do qual se senta Sílvia Barroso, directora da edição online, que parece prestes à beira de um esgotamento. Esta é uma semana muito importante e o Ara habituou-se a dar notícias mais depressa do que as agências, principalmente as políticas.

“O Ara apareceu por três motivos: para pensar que país queremos e o mundo em que estamos num momento de mudança política e jornalística”, resume Aragay, olhos azuis e barba grisalha curta, falando como se tivesse todo o tempo do mundo embora tenha de voltar em breve para a mesa redonda das decisões.

No início, conta, todos lhes chamaram loucos. “Fomos a Nova Iorque, a vários países europeus, e disseram-nos que nunca teríamos êxito, com um jornal generalista em papel e a cobrar pela edição digital. Nós seguimos o nosso caminho e aqui estamos.” Também têm colaboradores um pouco por todo o mundo e dão muito espaço às notícias de Internacional, à secção de Cultura e à opinião, nacional e internacional.
A Catalunha “estava a mudar” e o Ara saiu na altura certa. Não se assume como independentista mas defende o direito dos catalães a decidirem o seu futuro político através de um referendo, e ao longo dos últimos anos dedicou muitos especiais ao tema. “Não somos nem queremos ser um promotor destas mudanças, mas queremos ajudar as pessoas a pensarem na Catalunha do futuro, que políticas querem os catalães, de educação, de energia, que qualidade democrática, diz Garcia Ruiz

Dias históricos
“O contexto político ajudou-nos muito. Quando a Convergência [CiU, Convergência e União] ganhou as eleições de 2012 [com um mandato para realizar uma consulta] nós já cá estávamos, a pensar nisso. Desde então, foram muitos os dias históricos em que toda a gente quis comprar o jornal, e a nossa imagem está associada ao processo”, afirma Oriol Marc, 26 anos, um dos jovens que Aragay escolheu há quatro anos. “O que tentamos fazer sempre é ser o jornal que melhor explica o que está em causa.”

Ferran Casas, editor de Marc e da secção de Política, tem algum medo desta relação. “Às vezes os nossos leitores zangam-se, nem sempre escrevemos o que eles querem ler. Quando explicas coisas que não são bonitas, não é fácil… Há uma parte disto que é muito épica, como as grandes manifestações, sempre alegres, e os partidos da direita à esquerda que se uniram por uma causa, mas nem tudo é assim. Às vezes os partidos independentistas não se entendem e fazem disparates e ninguém quer ler isso. Mas nós fazemos jornalismo, não fazemos política”, diz.

“Ter posições ambíguas também é difícil nestes tempos”, nota. É o caso do jornal La Vanguardia, que tentou evitar qualquer posição editorial sobre o processo político actual e tem sido muito criticado por isso.

Desilusão colectiva
Para Casas, na Catalunha, este é naturalmente um momento único em que as pessoas querem ler e comprar jornais. O problema é que ninguém sabe como isto pode acabar e Casas teme que o jornal esteja demasiado vinculado à vaga de independentismo. “Como jornalista, é bonito que te relacionem com um processo que diz tanto às pessoas. Mas o jornal tem de poder sobreviver à margem disto. Se não houver uma mudança real, uma independência ou pelo menos uma revisão constitucional que mude o estatuto da autonomia, temo que o resultado seja uma grande desilusão colectiva.”

Independentemente das sondagens sobre a vontade de separação de Espanha e o resultado do processo de consulta de domingo ou de um futuro referendo vinculativo, a verdade “é que há uma maioria muito clara que defende o direito a decidir, uns 80%, e outros 70% que se dizem insatisfeitos por não lhes ser dada essa oportunidade”.

Com 37 anos, Casas nunca pensou que passaria por tantos dias “que se podem considerar históricos” e acredita que ainda pode viver “o nascimento de uma nação”. Na Catalunha, os últimos anos foram “muito emocionais”, diz, ele que viveu as eleições de 2004 em Madrid, três dias depois dos atentados do 11 de Março, quando o PP de José María Aznar tentou responsabilizar a ETA por um atentado reivindicado pela Al-Qaeda e acabou por perder as eleições para os socialistas de Rodriguez Zapatero.

“Aquilo foi uma emotividade altíssima, três dias ao rubro. Aqui, os decibéis não estão tão altos mas estão muito mais altos do que em qualquer outro lugar e já há muito tempo”, descreve Casas. Depois, concluiu com um facto que tanto o apaixona como o assusta: “Na Catalunha há mais gente do que o normal que chora pela política.”

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