No universo dos bens essenciais

A pequena dimensão do ensino das artes em Portugal poderá ser olhada como a expressão de um país que interrompe sistematicamente as suas políticas culturais, introduz a descontinuidade como regra e inventa sucessivos recomeços para mascarar o desinteresse instalado neste campo.

Os dados estatísticos disponibilizados pela Direcção-Geral do Ensino Superior relativos a 2011 e 2012 revelam aquela dimensão. A área das Ciências Sociais, Comércio e Direito (onde se encontram os cursos de Gestão e de Economia) absorve a maioria dos candidatos, logo seguida da Engenharia, Indústrias Transformadoras e Construção (que engloba Arquitectura) e da Saúde e Protecção Social. Esta tendência verificava-se já num estudo do mesmo organismo sobre a evolução da procura dos cursos superiores entre 2000 e 2009, que coloca no topo das preferências dos estudantes portugueses, os cursos de Saúde, Direito e Gestão. Só depois destes domínios aparece a área das Artes e Humanidades e, finalmente, a das Ciências, Matemática e Informática, a dos Serviços, a da Educação e a da Agricultura.

Ao longo da primeira década deste século, as Artes e Humanidades receberam cerca de 10% dos alunos do ensino superior. Dentro deste conjunto, as Artes foram ganhando algum terreno às Humanidades (História, Arqueologia, Línguas, Literatura, Filosofia e Religião) até representarem cerca de 60% do total desta grande área de estudos.

Estes estudantes, reagindo aos sinais dos tempos, foram-se transferindo dos cursos tradicionais de artes para cursos do grupo dos Áudio-Visuais e Produção dos Media (com cerca de 1/3 do total dos inscritos) seguidos de Design, Belas-Artes, Artes do Espectáculo, Conservação e Restauro (constituindo estes últimos cursos um domínio quase residual no todo do ensino superior artístico). Os dados conhecidos de 2013 e 2014, embora não tenham ainda sido disponibilizados com idêntico tratamento, parecem apontar no sentido descrito. Dir-se-ia que, do ponto de vista da procura, umas áreas parecem mais essenciais do que outras.

No entanto, as práticas artísticas são, hoje, parte integrante de acções educativas, de campanhas de comunicação e propaganda, de movimentos de sensibilização cívica e ambiental; preenchem a programação regular das salas de concertos e de espectáculos, das galerias e dos museus, dos festivais, das festas e das intervenções urbanas; fornecem conteúdos nucleares aos meios de comunicação; contribuem para o uso, a valorização e a divulgação do património, esse mesmo que é procurado pelas vagas de turistas que chegam a Portugal em número cada vez mais significativo. Nestas práticas radicam também os critérios para avaliar o que vem a ser a nossa qualidade de vida. São, portanto, bens essenciais.

Apesar desta realidade, constatamos que há domínios explicitamente defendidos pela sociedade em geral, pela opinião pública, pela comunicação social e outros – como aquele que nos ocupa – que continuam a ser desvalorizados social, economica e financeiramente, como se uns fossem mais essenciais do que outros.

A vida seria uma experiência estranha sem a dimensão estética, o mundo seria inabitável sem a presença da arte e o homem seria uma criatura incompleta sem a visão dos artistas. É a ela que recorremos para gerar a nossa própria visão e articular o nosso destino, algo que se concretiza naquele sentimento básico que experimentamos ao identificar-nos plenamente com uma obra literária, cinematográfica, musical ou plástica. Aí percebemos como a arte nos revela o que afinal já sentíamos, mas não éramos capazes de manifestar. Nada mais simples. Nada mais essencial.

Como reconhecer este valor senão através do alargamento da acção dos artistas e de todos os que se relacionam com a arte (criadores, produtores, curadores, críticos, historiadores, divulgadores, museólogos, galeristas, colecionadores, mecenas, conservadores)? Como assumir este papel senão através da maior participação destes actores nas decisões sobre o nosso mundo, sobre as cidades e sobre os lugares em que a nossa vida decorre? Como legitimar esta presença senão mediante a promoção do ensino artístico? Trata-se de chamar os criadores a colaborar antes das decisões tomadas e de lhes proporcionar mais oportunidades de intervenção e de apresentação de ideias.

Retomo o problema da dimensão, centrando-me agora na pequena dimensão que caracteriza muitas escolas artísticas na Europa, conhecendo-se casos em que a abertura dos cursos se processa de dois em dois anos, de três em três e até de quatro em quatro (!). Cinema, animação, conservação e restauro são alguns dos cursos que se encontram nestas condições. Razões estratégicas e imperativos de sustentabilidade poderão presidir a esta opção que também se relacionará, seguramente, com a natureza das práticas artísticas de que falamos e que são, em boa medida, alheias a lógicas de massificação. Nem por isso menos essenciais.

É mais importante a expressão social do ensino artístico, enraizada no reconhecimento da arte e da cultura como bens essenciais, do que a sua dimensão.

Directora da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto

Sugerir correcção
Comentar