Eu já não acredito no Papa Francisco (2)

Um futuro de justiça e de paz para todos não é uma loucura. É uma tarefa!

1. O título da crónica do Domingo passado – Eu já não acredito no Papa Francisco - foi censurado por uma razão óbvia: o título tem de exprimir o conteúdo do texto. Ora, o meu artigo era um elogio do pontificado do papa Bergoglio e uma convocatória para não o deixarmos só, no momento em que é acusado de instalar o “PREC”, na Cúria Romana. Texto e título estão em mútua oposição. Aceito e agradeço o reparo.

Além disso, o emprego corrente da expressão - “eu já não acredito” – revela um desapontamento, uma decepção com o Pontífice romano, observável em diferentes quadrantes: para uns, ele já foi longe demais; para outros, ao ser demorado na reforma da cúria, será ela a tornar impossível continuar a obra começada. Ao espelhar esta situação, visava algo muito diferente que insinuei, na última linha, sem mais explicações.

Vamos, então, à substância. Não sou católico por causa do Papa Francisco, cujo projecto e práticas me dão muita alegria, não podendo dizer o mesmo de todos os que conheci, mas nunca poderei esquecer a minha dívida a João XXIII.

Causam-me sempre bastante tristeza os desabafos das pessoas que deixam de “ser católicas” devido a certas posições da hierarquia eclesiástica. Nessas alturas, lembro-me da reacção do Padre Chenu, quando, em meados do século passado, louvaram a sua “obediência”, em vez de revolta contra as condenações romanas a que fora submetido. Escreveu um texto para dizer que não se tratava de obediência: foi e é a fé sobrenatural em Jesus Cristo, que recebi na Igreja, mas que não é propriedade de nenhuma instituição humana ou religiosa, que me sustenta.

Chenu, grande medievalista e renovador do conhecimento histórico de Tomás de Aquino, lembrava que, para este teólogo, o terminal do acto de fé não são os enunciados do Credo, mas a misteriosa realidade divina. Estes são apenas mediações para o encontro com a Verdade (II-II, q.1.a.2 ad 2). Para S. Tomás, a fé teologal refere-se à própria realidade de Deus e não a uma criatura, como por exemplo a Igreja. Por isso, no Credo, quando se diz creio na Santa Igreja Católica, esta expressão deve ser entendida como referida ao Espírito Santo. Daí que seria preferível dizer simplesmente: creio no Espírito Santo que santifica a Igreja (II-II, q.1.a.9).

Trazer para aqui estas subtilezas parece uma tentativa para ignorar os debates actuais em torno da fé cristã e dos seus problemas, num contexto que oscila entre o ateísmo, o fideísmo e as espiritualidades à la carte, mais ou menos bem adocicadas.

2. A seguir à 2.ª Guerra Mundial, certas correntes teológicas tentaram responder à seguinte questão: que sentido tem, para a construção do Reino de Deus, o trabalho e o lazer em que gastamos a maior parte do nosso tempo? Desenvolvia-se, então, a teologia das realidades terrestres e do sentido da construção da História Humana. Desejava-se viver o Cristo todo na vida toda. Os próprios padres deixavam a sacristia e iam para as fábricas aprender o que custava a vida dos trabalhadores. Dizia-se que estava mal, porque mãos consagradas e dedicadas a levantar a Hóstia na missa não se podiam manchar no óleo e na ferrugem. Nenhum trabalho, porém, era incompatível com as mãos daqueles e daquelas que o Baptismo consagrou. A “teologia do laicado” foi superando os limites da teologia da Acção Católica. O Vaticano II, na Gaudium et Spes, assumiu as dimensões incarnacionistas da fé cristã: um futuro de justiça e de paz para todos não é uma loucura. É uma tarefa! A fé é uma esperança que revela uma dimensão que a razão esquece e reprime: o horizonte dos seres humanos não se limita à sua condição mortal. O futuro não é apenas o resultado das nossas acções e do sacrifício de gerações inteiras, para que aconteça um mundo em que se possa viver. Este futuro seria um engano para todas aquelas e aqueles que foram escravos da construção daquilo que nunca poderão ver nem gozar. Só a memória infinita do Amor por cada ser humano pode vencer a vala comum.

3. No dia consagrado a não esquecer aqueles que já encontraram a Casa da Alegria, lembro o poema de Frei J. Augusto Mourão, escrito para uma música muito bela que se canta no Convento de S. Domingos:

Não pode a morte reter-me na cruz. Não pode o mundo arrancar-me à raíz. Ao pé de Deus hei-de sempre viver. Com Deus cheguei e com Ele vou partir.

Não poderá corromper-se a alegria. Não pode o fogo extinguir-se no céu. Meu ser demanda a morada do Deus que guarda os nomes no livro da vida.

Não pode a morte apagar o desejo de ver a Deus face a face e viver. A Deus busquei toda a vida e vivi de acreditar no infinito da vida. Não nos reduz o escuro da noite.

Não pode o amor esquecer o que o altera. Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos. Já ouço a voz do amigo que vem.

Não pode o mar esquecer o que o salga. Não pode a areia esquecer-se do mar.

Meu Deus, meu Deus, vem buscar-me ao deserto. Que em tuas mãos entreguei a minha sede. A Tua vida me toma e transporta. Teu sangue inunda meu corpo de paz. Eu vejo as mãos do Senhor glorioso. Nas minhas mãos a memória de Deus.

A Ti, Senhor, meus desejos regressam. Findo o andar, disponíveis as mãos. Abre meu corpo ao devir que não sei. Eu chamo a esperança pelo nome de Deus.

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