“Portugal está a liderar” a negociação do tratado transatlântico

Para Bruno Maçães, o tratado comercial entre a Europa e os Estados Unidos “não é um assunto que possa ser decidido de acordo com os interesses da Alemanha”

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Com um surpreendente recuo na defesa dos célebres tribunais arbitrais de “protecção ao investimento”, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, explica, nesta entrevista, como surgiu a ideia de dirigir uma carta à Comissão Europeia sobre as negociações da Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (TTIP). E garante: “Não há qualquer diferença entre a posição do Presidente Juncker e a posição dos 14 países que assinaram a carta.”

Porque é um secretário de Estado a dar a cara por uma negociação tão decisiva para o futuro do país? Todos os subscritores são ministros, porque foi o senhor e não o MNE a assinar a carta?
Julgo que a regra foi dirigir os convites às pessoas que se sentam no Conselho de Comércio [da UE]. E eu tenho representado Portugal no Conselho de Comércio. É uma prática antiga, serem os Negócios Estrangeiros a representar o país no Conselho de Comércio. Era essa a prática quando eu cheguei.

Por que é tão vital para Portugal e para o interesse português que haja uma cláusula deste tipo?
De onde é que retira a conclusão de que é vital para Portugal?

Do facto de o senhor ter assinado a carta que defende a inclusão de mecanismos de protecção do investimento…
Não. A carta diz, e vou citar a frase exacta: “O mandato do Conselho é claro na sua inclusão da ISDS nas negociações TTIP.”

Não no texto, mas nas negociações. Isto é importante porquê?
Porque as negociações têm de incluir o maior número possível de tópicos para que tenham maior possibilidade de sucesso. Se o ISDS estará no texto final, ou não, não sabemos…

Para Portugal, não é vital que exista uma cláusula deste tipo na versão final do acordo?
Depende muito da cláusula. Há argumentos a favor e contra. Um é importante: Portugal tem estado bastante fora do enquadramento jurídico da protecção do investimento. Temos de analisar com muito cuidado se isso tem sido prejudicial para nós. Eu pergunto-me, por exemplo, porque é que a Alemanha, que tem defendido a exclusão do ISDS nos tempos mais recentes tem, por exemplo, 14 acordos ISDS com membros da União Europeia?

Tem uma resposta para essa interrogação?
Não, não tenho. Tenho feito a pergunta e tenho participado nas discussões. E terei discussões com os meus colegas alemães sobre isto. O que posso dizer é que isto não é um assunto que possa ser decidido de acordo com os interesses da Alemanha. É um assunto que tem de ser decidido de acordo com os interesses de todos.

A posição portuguesa foi decidida e discutida em Conselho de Ministros?
A estratégia portuguesa, que é elaborada e detalhada, é decidida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, em colaboração com o ministro da Economia e, em última análise, a decisão é do primeiro-ministro. Porque esta é uma matéria transversal, que inclui a energia, a agricultura, o ambiente, a indústria, tem de ser decidida pelo Governo no seu conjunto. Eu sou o executor destas decisões. Participo nelas, mas sou sobretudo o executor.

Mas acabou por não responder se foi decidido em Conselho de Ministros…
Esta carta? Em Conselho de Ministros?

A subscrição da carta.
O TTIP e a política comercial já foram discutidos em Conselho de Ministros.

Está, habilidosamente, a fugir à pergunta…
Como sabe, eu não tenho assento no Conselho de Ministros. O que sei é que o ministro dos Negócios Estrangeiros já discutiu as grandes orientações estratégicas do TTIP em Conselho de Ministros.

O facto de esta carta ter surgido na semana passada levantou uma discussão intensa a nível europeu. Era esse o objectivo?
Há um objectivo principal que é defender a importância destas negociações. Eu acho que são mais importantes para Portugal do que para a grande maioria dos outros países da UE. A carta, se a ler com cuidado, diz: vamos defender estas negociações e mantê-las a bom ritmo.

Havia algum receio de que isso não se passasse assim com a mudança da Comissão?
Não. Vou ser muito directo. Diz respeito a dúvidas que alguns países têm sobre o processo e com as quais eu não concordo.

Que dúvidas?
Dúvidas que nos têm chegado sobretudo da Alemanha quanto ao ritmo e à prioridade que estas negociações têm. Para mim e para o Governo português são absolutamente prioritárias. Outros falarão por si.

Mas o Presidente Juncker já chamou “tribunais secretos” aos mecanismos de arbitragem. Isto para a generalidade das pessoas é estranho, não concorda?
Essa não é uma expressão do Presidente Juncker, é uma expressão dos críticos do TTIP, que ele usa, evidentemente, para dizer que não faz qualquer sentido e que não há tribunais secretos na Europa. O Presidente Juncker sempre tem dito que estes mecanismos arbitrais de protecção do investimento não podem pôr em causa a jurisdição dos Estados. É também a minha posição e a do Governo português. Não há qualquer diferença entre a posição do Presidente Juncker e a posição dos 14 países que assinaram a carta. Porque Juncker nunca excluiu que o ISDS viesse a fazer parte do acordo.

Embora tenha parecido que o queria excluir…
Interpretações, sobre as palavras, não vou fazer. As palavras foram muito claras.

Não haverá então um risco de perda de soberania dos Estados?
Não. Esse é o ponto crucial. Esta cláusula e este tipo de mecanismos já existem. São aplicados regularmente. Há talvez quatro mil acordos que aplicam este tipo de mecanismo. Portugal é parte numa boa dezena deles. O mecanismo existe. O que estamos a tentar fazer é dar-lhe alguma ordem, torná-lo mais transparente, eliminar os abusos. A mim muito me surpreende que os críticos deste mecanismo pensem que ele não existe se não estiver no TTIP. Ele já existe e é, em muitos casos, abusivo.

A possibilidade de as empresas processarem os Estados, em tribunais privados, por decisões que afectem os seus investimentos, não limita os Governos?
Não. Este mecanismo de arbitragem não aplica leis nacionais, aplica o texto do acordo. Visa impedir que os tribunais nacionais tratem os seus cidadãos melhor do que tratam os estrangeiros. Isso parece-me razoável desde que o mecanismo faça isto e se limite a fazer isto. Ao mesmo tempo, o mandato torna claro que nada pode pôr em causa a capacidade de os Estados protegerem a Saúde, a Segurança, as normas laborais, do consumo, do Ambiente e da promoção da diversidade cultural. Incluir o mecanismo [ISDS] no TTIP permitiria afastar os acordos que já existem, e envolvem países europeus, e substituí-los por um mecanismo melhor, sem abusos. As pessoas que criticam a inclusão do ISDS no TTIP estão a defender a manutenção dos abusos tal como existem agora e beneficiam algumas empresas. Estão a defender a manutenção da posição dominante de alguns países que têm este tipo de acordos face a outros que não os têm.

Não parece que seja assim. Há muitas queixas quanto à falta de transparência. Até a carta que subscreveu era, supostamente, “secreta”…
Permita-me uma interjeição: Oh meu Deus! A carta é pública, está no website de vários países. Eu fiz tweets sobre a carta. Infelizmente tenho é muito pouca gente a seguir-me.

Tem Pacheco Pereira…
Sim… Pacheco Pereira… (risos) A carta é pública. Eu estive, na semana passada, no Parlamento, durante duas horas, a discutir ISDS.

Porque é que o Governo nunca levou ao Parlamento um debate sobre este tratado e o que está em jogo?
Já estive duas vezes, no Parlamento, a meu pedido, para discutir este tema. Não sei se faz sentido ter uma discussão no plenário, mas estou disponível. Já pedi ao Parlamento para me convocar, sempre, na semana a seguir aos Conselhos do Comércio. Se quiserem ter uma audição antes, ou depois, dos Conselhos, também estou disponível. Se há coisa que me agrada é discutir este tema. Tem sido difícil interessar os media e a opinião pública. Mas isso está a mudar. E acho que posso reclamar algum mérito nisso. Estou inteiramente disponível para discutir como Portugal está a liderar este processo. O objectivo é precisamente que tenhamos uma voz activa, uma voz de liderança.

A Europa parece dividida a meio. A carta é apenas subscrita por metade dos países…
A opinião maioritária, quase unânime, é que o TTIP é uma prioridade para a política europeia. A carta é subscrita por 14 países mas tem o apoio de outros, que não a assinaram.

Não assinaram porquê?
Suponho que alguns países preferem reservar a sua posição para mais tarde. O que acontece muitas vezes é que há relações de proximidade e de amizade entre os representantes de alguns países que, rapidamente, em algumas horas, conseguem elaborar uma carta conjunta. Se tentassem incluir outros países teriam de trabalhar no texto durante dias… E em política o tempo conta.

O grupo inicial foi Portugal, Espanha e Inglaterra?
Como lhe disse, Portugal quer ter um papel muito activo nesta discussão. E temos uma posição muito próxima de Espanha e de Inglaterra neste ponto, isso é verdade.

Segundo os seus estudos, os sectores da economia portuguesa que mais beneficiam com o TTIP são os tradicionais: têxteis, vestuário, calçado. Que sectores devem temer a liberalização do comércio com os EUA?
Alguns subsectores agro-alimentares são vulneráveis: o tomate, a laranja, os processados destes produtos. Outros serão beneficiados, como o vinho. No sector agro-alimentar julgo que haverá mecanismos de protecção e de transição adequados. É isso que está a ser pensado. É verdade que haverá uma reafectação de recursos. Temos de garantir que todos os sectores ganham com o acordo. Este é um processo que, na transição, tem custos económicos e sociais. Temos de garantir que o investimento público e privado torna esses sectores mais resistentes. Esse é um desafio para os próximos três a cinco anos.

O senhor está a dar a cara por esta negociação. Se as coisas correrem mal é a si que os portugueses devem pedir explicações?
A estratégia está a ser decidida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e pelo primeiro-ministro. Eu sou o executor. Mas a execução também é importante. E se correr mal, eu serei o responsável.

As negociações terminarão ainda durante o seu mandato?
Eu estou a trabalhar muito para que as negociações terminem no final de 2015. Por isso, se tudo correr bem sim. Coincidirá com a data em que estão previstas as eleições em Portugal.

Considera que a actual legislatura não deve ser antecipada?
Como o senhor primeiro-ministro tem repetido, o calendário eleitoral deve ser respeitado.

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