Mudam as operações mas os migrantes nos barcos do Mediterrâneo continuam sujeitos ao perigo

Itália termina operação que salvou mais de 150 mil vidas. Ainda assim morreram mais de 300 pessoas e muitos temem que a mudança de operações potencie mais naufrágios.

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Os números de pessoas a tentar passar o Mediterrâneo sem o mínimo de condições bateram um recorde absoluto FILIPPO MONTEFORTE/AFP

Todos garantem que salvar vidas é a prioridade absoluta e que ninguém vai virar costas a barcos cheios de migrantes no Mediterrâneo.

Mas está longe de ser claro o que vai acontecer depois de Itália anunciar o fim da operação Mare Nostrum, que começou após os naufrágios em Lampedusa que provocaram mais de 400 mortes e deixaram o país em estado de choque, e hoje termina.

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Em seu lugar, começa também este sábado a operação Tritão, do Frontex, a agência encarregada das fronteiras da União Europeia.

Mas enquanto a operação italiana, que salvou mais de 150 mil vidas em embarcações frágeis pelo Mediterrâneo no último ano, tinha meios próprios e um orçamento de 114 milhões neste ano, a operação do Frontex é feita com base nas ofertas de Estados-membros e o orçamento é de apenas 3 milhões de euros por mês.

O Frontex prevê usar seis navios de três tipos diferentes (Portugal vai participar com um), dois aviões e um helicóptero por mês.

O Reino Unido, que causou polémica por declinar participar na missão argumentando que salvar os migrantes “encoraja” mais pessoas a chegar, enviará um especialista em identificação.

A teoria do encorajamento é refutada por muitos: a Organização Internacional para as Migrações também diz que o grande aumento se deve sim ao desespero de “pessoas a fugir da guerra, perseguição e regimes totalitários”, e a Amnistia cita ainda o aumento da construção de muros, como na Grécia, que obriga os migrantes a enfrentar o mar.

A passagem de testemunho não parece ter sido suave, pelo menos pelas declarações públicas. Ainda na semana passada responsáveis europeus caracterizavam as operações como “totalmente distintas”, com a italiana a focar-se em salvar vidas e a europeia em vigiar fronteiras, e nas comemorações do naufrágio de Lampedusa o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, disse que o Mare Nostrum só acabaria “quando a UE tiver algo tão bom ou melhor”.

Ontem, o ministro do Interior Angelino Alfano argumentava que uma operação parava porque já não fazia sentido existindo a outra. “A Mare Nostrum era uma operação de emergência. Por isso acabou.” A Europa partilhou o fardo de patrulhar e salvar pessoas na fronteira e assim a Itália pode afastar-se com o sentimento de dever cumprido, defendeu Alfano, garantindo: “Não vai haver um aumento de mortos. O número de mortos não é proporcional ao dinheiro que é gasto.”

Para além das vidas salvas, foram detidas 351 pessoas que faziam dinheiro a levar imigrantes no âmbito da operação italiana. Por outro lado, apesar das patrulhas e salvamentos, houve ainda mais de 350 pessoas mortas em naufrágios. O Alto Comissariado da ONU aponta para outro participante de que não se fala tanto – os navios comerciais, que contribuíram para mais de 37 mil salvamentos este ano.

Falta de clareza
Agências de defesa de direitos humanos  preocupam-se com a mudança de missão numa altura em que os números de pessoas a tentar passar o Mediterrâneo em embarcações sem o mínimo de condições bateram um recorde absoluto, ultrapassando mesmo o número de 2011, o ano das chamadas primaveras árabes – um aumento que se deve tanto a medidas mais restritivas em terra como muros na Grécia e em Espanha como aos conflitos, especialmente a guerra cada vez mais brutal na Síria.

Elisa De Pieri, investigadora da Amnistia Internacional que trabalhou para dois relatórios da organização sobre imigrantes que chegam por barcos no Mediterrâneo publicados este ano, preocupa-se com a falta de clareza em todo este processo.

Numa curta entrevista telefónica com o PÚBLICO, De Pieri defende que um fim abrupto da Mare Nostrum irá ameaçar vidas, no mar, de pessoas que estão numa posição de extrema vulnerabilidade. 

A Human Rights Watch diz, pelo seu lado, que “o âmbito limitado e o mandato de controlo de fronteiras da Operação Tritão não são substituto para a Mare Nostrum”. Segundo a investigadora Judith Sunderland, “se a União Europeia está a considerar seriamente evitar tragédias futuras, tem de dar à Tritão o mandato e recursos para resgatar barcos no Mediterrâneo.”

O Frontex garante que tem recursos e repete, numa troca de emails com o PÚBLICO, a formulação que tem usado: “ainda que o mandato do Frontex e o principal foco da Operação Tritão seja o controlo de fronteiras, tenho de sublinhar que, como em todas as nossas operações marítimas, consideramos o salvamento de vidas a prioridade absoluta da agência.” O limite de 30 milhas náuticas (a Mare Nostrum não tinha limite) poderá ser passado em caso de necessidade, argumentam os responsáveis do Frontex, que apontam para a “vasta área de vigilância”, e sublinham a cooperação anterior do Frontex com as autoridades italianas com uma ligação operacional desde 2006.

O gabinete de informação do Frontex indica ainda que “o número de ofertas dos países foi muito superior às necessidades”. Vão participar meios e pessoal de França, Finlândia, Holanda, Espanha, Portugal e até da Islândia, que não é membro da UE. 

De Pieri acaba a conversa com uma nota sobre as pessoas, aquelas pessoas amontoadas nos barcos, tão frágeis, num mar tão grande. O que a impressionou mais no trabalho sobre estes refugiados é o grau de desespero: “é incrível como é que as pessoas estão a arriscar as suas vidas por protecção”.

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