Pais responsáveis por 45% dos casos de maus tratos a crianças até seis anos

Instituto Nacional de Medicina Legal examinou 279 casos de maus tratos a crianças em três anos. De bofetadas a queimaduras com cigarros, foram muitos os exemplos das agressões levadas a cabo pela família.

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Seis dos casos foram mortais Daniel Rocha

Bofetadas, agressões com objectos, empurrões ou mesmo queimaduras com cigarros. Estes são apenas alguns dos exemplos dos 279 casos de maus tratos a crianças com menos de seis anos que chegaram ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) entre 2011 e 2013. Quase sempre, em mais 45% das situações, o alegado agressor foi um dos pais da vítima. Os dados fazem parte de um estudo antecipado ao PÚBLICO, coordenado pelo vice-presidente deste instituto, João Pinheiro, e que será apresentado nesta sexta-feira em Coimbra, no último dia da I Conferência do INMLCF.

O trabalho Maus tratos infantis e morte em Portugal: estudo retrospectivo de três anos, realizado por João Pinheiro com o apoio de Júlio Barata e Rosário Silva, também da Delegação do Centro do INMLCF, permite perceber que o número de casos de ofensas a crianças até aos seis anos que chegaram ao instituto em 2013 mais do que duplicou em relação a 2011. Nesse ano foram feitos 59 exames, um número que aumentou para 83 em 2012 e para 137 no ano passado – o que representa um crescimento de 130% no período em análise. “E estes números não traduzem o fenómeno dos maus tratos em Portugal, são apenas o resultado das crianças que vêm a exames nas nossas estruturas na sequência de uma queixa ou de uma denúncia”, sintetiza o também director da delegação do Centro do Instituto.

João Pinheiro esclarece, contudo, que “na literatura existem diversas definições sobre maus tratos, e o que foi seguido neste trabalho foi o critério que a  lei determina”, numa referência ao que o Código Penal estipula como ofensas à integridade física simples ou grave, à violência doméstica e aos maus tratos. O médico legista ressalva também que o aumento de casos ao longo dos anos não é necessariamente sinal de que existam “mais crimes contra a integridade física, podendo igualmente significar que há mais gente a denunciar e que os serviços estão mais eficazes, como aliás também se passa com a violência doméstica”. “Mas a sinalização ainda é, de todas as formas, insuficiente”, adverte, atribuindo parte do problema à dispersão das vítimas por várias entidades.

Sobre as 279 situações registadas nos três anos, o médico legista salienta que “em 11 casos não foi possível documentar as lesões, pelo que fica por esclarecer se foi falso alarme”. Numa outra base de dados, referente às autópsias, foram ainda identificadas seis vítimas mortais com menos de seis anos e cuja causa da morte é atribuível a maus tratos como asfixia, intoxicação e lesões traumáticas, que o médico reforça que são as situações que retratam o lado mais “extremo e definitivo” destes crimes. “Há quase duas crianças que por semana, em média, vêm aos nossos serviços a exame por suspeita de maus tratos”, um número que preocupa João Pinheiro, mas que ainda assim representa menos de 1% do total de exames por agressão que o INMLCF tem de fazer no âmbito do direito penal.

Em termos de idades, em 18,6% dos casos as crianças tinham menos de um ano, em 22,9% tinham entre um e dois anos e em 21,9% já tinham entre três e quatro anos na data da agressão. No estudo, João Pinheiro procurou também perceber qual era a distribuição dos casos quanto à relação da vítima com o alegado agressor, esclarecendo que utiliza a palavra “alegado” por “em rigor não podermos dizer que foram os pais que bateram ou outra pessoa qualquer. São alegados agressores pois só se pode afirmar de forma segura depois de o tribunal determinar, ainda que nos casos das crianças a correspondência seja quase de 100%”. Da experiência do médico, os casos que se acabam por revelar errados dizem normalmente respeito a situações de divórcios complicados “em que os pais instruem os filhos para dizer que o outro lhes bateu”.

Ainda assim, a base de dados que suporta o trabalho indica que em 45,5% dos casos os pais das crianças terão sido os agressores e em 3,9% os padrastos ou madrastas. “Os progenitores masculinos são os que mais frequentemente agridem, o dobro das mães”, descreve João Pinheiro, referindo-se aos 30,5% de casos registados como sendo o pai o alegado agressor, contra 15% em que surge a mãe. Dados que, sublinha, “vão em sentido contrário ao que acontece em alguns países com estudos semelhantes, como os Estados Unidos, Finlândia, China e Chile, em que o acto é mais praticado pela mãe”. Registaram-se também 33% de casos com conhecidos, que em 20% das situações tinham uma relação familiar com a vítima, sendo na maior parte dos casos vizinhos, mas também avós, tios, irmãos e primos ou outros familiares não especificados. Há ainda 5,4% de situações atribuíveis aos cuidadores de crianças institucionalizadas e 12,2% a desconhecidos.

Em mais de 93% dos casos, completa João Pinheiro, “as ofensas foram contundentes, sendo que contundente significa tudo o que serve para bater”. “Mas numa queda, o cão chão também funciona como instrumento contundente”, exemplifica o especialista. Deste total, em 27,3% das crianças as lesões foram atribuídas a bofetadas, 20,8% a objectos variados, 20% a empurrões, 15,8% a “apertões, abanões, cotoveladas e puxões”, dizendo as restantes respeito a murros, pontapés, unhadas e mordeduras. Em 3,9% dos exames foram identificadas lesões feitas com objectos cortantes, 1,8% de queimaduras com cigarros e 1,1% de agressões com produtos tóxicos. “Embora os números sejam muito pequenos, as queimadoras são todas por cigarros, que quase se pode dizer que é tortura, mais do que maus tratos”, alerta o dirigente do INMLCF.

João Pinheiro diz que o contacto entre os médicos e os agressores é praticamente inexistente, seguindo um relatório para tribunal, que só chama os peritos em caso de dúvidas. Mas, em linha geral, as condenações dos agressores variam consoante se verifica uma ofensa à integridade física simples ou grave. “Uma fractura pode ser uma ofensa corporal simples se curar bem, mas também pode ser grave se tiver efeitos permanentes, como quando alguém parte uma perna e precisa de pôr uma prótese, ou fica com uma mutilação que a deixa desfigurada”, descreve. Em 90,3% dos casos analisados pelo instituto as agressões não tiveram consequências permanentes, mas houve 5,1% com consequências permanentes e 0,7% com perigo para a vida.

Os dados mais recentes da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ), que constam do relatório anual relativo a 2013, indicam pelo contrário que os processos por maus tratos que chegam às CPCJ têm vindo a cair desde 2007, representando agora 5,5% do total, contra 8,9% há seis anos. Os maus tratos físicos que desencadearam a abertura de processos ocorreram na maioria dos casos em contexto de violência doméstica. Na maior parte das vezes as crianças tinham entre 11 e 14 anos (503 processos), e entre seis e dez anos (494 processos). Até aos seis anos – a mesma idade a que reporta o estudo do INMLCF – foram abertos 398 processos.

A conferência onde se insere este estudo, que começou na quinta-feira, em Coimbra, contou com mais de 450 inscrições para um total de quatro painéis, com 41 comunicações orais e 77 posters.

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