Independência científica ou “bom nome”?

O seu acto é injustificável e não é por eufemisticamente lhe chamar “gestão de conteúdos” – e não censura – que deixará de o ser.

No início desta semana, José Luís Cardoso, director do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, decidiu “retirar de circulação” o último número da Análise Social. Em seguida, comunicou a decisão à direcção editorial da revista e, de então em diante, tem-se desdobrado em declarações aos órgãos de comunicação social. A estes confirmou que os exemplares já impressos foram apreendidos e que “serão agora destruídos”. E procurou justificar a censura praticada.

A primeira razão que Cardoso apresentou para a sua decisão foi o “mau gosto” das imagens que compõem o ensaio visual publicado neste número da revista. Da responsabilidade de Ricardo Campos, da Associação Portuguesa de Sociologia, esse ensaio é composto por um breve texto, no qual se fala de uma tendência de repolitização da forma graffiti no actual contexto social de crise. No fim do texto, o sociólogo expõe imagens de vários graffiti que existem nas ruas de Lisboa e que satirizam e criticam figuras de Estado e grandes empresários, de Angela Merkel a Passos Coelho, de Belmiro de Azevedo a Alexandre Soares dos Santos. Foram estas imagens que o gosto de Cardoso considerou intoleráveis e são elas que, entretanto, têm sido reproduzidas na TVI, na RTP, no PÚBLICO ou no Expresso.

Como outros colegas da direcção cessante da Análise Social, tive oportunidade de explicar a José Luís Cardoso que estava a cometer um grave erro, prejudicial à imagem do ICS e ao prestígio da revista. E que o gesto era injustificável. O sociólogo Ricardo Campos estuda graffiti, o que não significa que comungue do conteúdo dos graffiti que estuda. As imagens que expôs são material empírico que tem recolhido e analisado nas suas investigações sociológicas. Responsabilizá-lo pelo conteúdo dos graffiti é tão descabido como supor que um historiador que edite a correspondência de Salazar é salazarista. Ou que um outro que estude as representações visuais de Hitler seja nazi. Os exemplos de ridículo poderiam multiplicar-se.

Entretanto, a argumentação de Cardoso começou a enredar-se em mais um labirinto de equívocos. Admitiu que, afinal, o seu problema não era com as imagens – e que tão-pouco o incomodaria a exposição dos graffiti. E passou a justificar-se com o facto de a direcção da revista não ter submetido o trabalho de Campos a avaliação externa. É um argumento não menos frágil do que o do “gosto”. Como está explicitado nas normas de publicação da revista, existem determinados conteúdos da mesma que não necessitam de avaliação externa. São conteúdos que ocupam um espaço menor da revista e cuja aprovação depende da avaliação editorial feita pela própria direcção da revista. De resto, esta é uma situação própria de várias outras revistas académicas. O ensaio visual em questão não tinha de ser submetido a avaliação externa e nenhum ensaio visual da Análise Social alguma vez o foi. Será que Cardoso também vai mandar destruir esses números?!? Enfim, suspeito que as explicações apresentadas por José Luís Cardoso não convençam sequer o próprio.

O seu acto é injustificável e não é por eufemisticamente lhe chamar “gestão de conteúdos” – e não censura – que deixará de o ser. Ele é director do instituto que é proprietário da revista, não é o director da revista. Estivesse no lugar do director da revista, o meu colega João Pina-Cabral, e poderia optar por publicar ou não publicar o ensaio visual em questão. Mas não está e a separação entre o conselho de gestão do ICS e a direcção da revista é fundamental para a credibilidade académica de ambos. O que se passou foi um acto de ingerência numa publicação que deve ser cientificamente imune à gestão dos interesses do instituto. A separação entre a responsabilidade editorial e a propriedade da publicação é um princípio sagrado da liberdade de expressão. A academia, e em particular a universidade pública, presta contas a este princípio. E nem falo na leviandade de quem manda destruir revistas impressas com dinheiros públicos.

Finalmente, quero pedir aos leitores que procurem não confundir a instituição com o seu actual director. No ICS existem excelentes investigadoras e investigadores, de doutorandos a catedráticos, bem como funcionários muito competentes. Cardoso diz ter procurado preservar o “bom nome” do ICS, mas está a fazer exactamente o contrário, acabando por arrastar com ele o prestígio da Universidade de Lisboa e das Ciências Sociais portuguesas. Ainda espero que tenha a lucidez de voltar atrás na sua decisão. E que os investigadores do ICS saibam ser suficientemente amigos do seu director para lhe dizerem que errou.

Ao José Luís Cardoso caberá tirar as consequências do seu erro. Da minha parte, e enquanto historiador que tem aprendido com os seus trabalhos científicos, tomo a liberdade de lhe sugerir que a eles passe a dedicar a totalidade do seu tempo de trabalho. Porque para liderar uma instituição universitária é preciso estar seguro de que o bom nome dessa instituição depende sempre, e antes de mais, do respeito pela liberdade e independência científicas. Quando trabalhei no ICS, tanto no tempo da presidência de Manuel Villaverde Cabral como na de Jorge Vala, era isso que se passava.   

Director adjunto cessante da Análise Social e professor auxiliar na Universidade Nova de Lisboa

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