A esquerda e o PS

A esquerda no seu conjunto deveria envolver-se no compromisso de desobediência às regras do tratado orçamental que implicam a perpetuação da austeridade por décadas.

Quase 50 anos de ditadura e as vicissitudes do processo que se seguiu ao 25 de Abril criaram a clivagem entre PS e PCP com a configuração que hoje conhecemos. O PCP foi o partido da resistência, marcando gerações de activistas e intelectuais e construindo uma implantação organizada nas empresas e nos sindicatos, enquanto o PS se transformou num partido de massas apenas com a implantação do regime democrático e por demarcação face ao PCP. É importante relembrar isto sobretudo aos que não se reconhecendo nem no PS nem no PCP são conduzidos a optar por um deles naquilo que designam por “política de alianças”.

Num momento em que a troika se prepara para abandonar o país, podendo criar na opinião pública a sugestão de que a austeridade pode acabar em breve, a esquerda no seu conjunto deveria envolver-se no compromisso de desobediência às regras do tratado orçamental que, por exigirem uma contracção acelerada do défice público e da dívida, implicam a perpetuação daquela mesma austeridade por décadas. Isso significa um desafio que não pode deixar ninguém de fora ao nível partidário, até porque neste momento, à esquerda, todos se declaram contra a austeridade. Não só o PCP, mas também o PS, na versão António Costa, faz disso um ponto de demarcação em relação à direita que pretende derrotar nas próximas legislativas, ainda que nada seja dito acerca do tratado orçamental.

Face a esta questão perfilam-se dois tipos de abordagens.

Primeiro, a daqueles que procuram influenciar o PS, declarando-se disponíveis para colaborar com um futuro governo desde que este cumpra um certo número de requisitos mínimos. Trata-se de uma perspectiva negocial, de olhos postos nas promessas que os actuais dirigentes irão certamente fazer e frustrar – mas que tem um enorme inconveniente, até tendo em conta a forma como está a ser gerida: alimenta ilusões que não têm fundamento na dinâmica concreta da social-democracia contemporânea e coloca os seus promotores à mercê da assimilação pelo cone de aspiração criado pelo próprio PS. Tudo isto sem resultados palpáveis.

Segundo, a dos que objectivamente privilegiam a aproximação ao PCP na convicção de que o desafio ao PS é uma causa perdida, afinal foi este mesmo partido que começou a austeridade e até assinou o memorando da troika. É, desde logo, uma visão que negligencia a evolução das expectativas de milhares de cidadãos, que devem ser confrontados com as contradições daqueles que os pretendem representar no governo de uma forma que não se resuma à política da denúncia feita aprioristicamente, que é insuficiente.

Uma variante deste argumento inspira-se numa ideia ainda mais discutível: o PS já não seria de esquerda, ao acompanhar a viragem neoliberal da social-democracia que inspirou Schröder, Blair, Hollande ou Sócrates e deve ficar fora do apelo de unidade à esquerda. É uma concepção que despreza a natureza ambivalente de um partido com uma direcção que habitualmente executa políticas de direita, mas visto pelos trabalhadores como sendo de esquerda e no qual a maioria deles se reconhece. O único partido a tirar vantagem desta abordagem é o PCP, pois alimenta aquela clivagem histórica da esquerda que lhe assegura o controlo de bases sem contágios. Não pode ser inspiradora para mais ninguém, sobretudo para os que não dispõem dessa implantação e antes precisam de a conquistar.

A resolução da tensão enunciada deveria passar por uma iniciativa que ganhasse dinâmica à esquerda e perante a qual toda a esquerda fosse responsabilizável, que não desistisse de influenciar e acompanhar o conflito e as diferenciações que pudessem surgir na consciência de muitos milhares de portugueses que se revêem nos grandes partidos de esquerda ou sem partido. Seria uma "carta contra a austeridade", construída de forma articulada com o contributo de um leque abrangente de sugestões, individuais e colectivas, partidárias e de movimentos sociais, no terreno das lutas concretas e das experiências de cidadania, o instrumento adequado para estruturar uma frente contra a austeridade mobilizadora e eficaz.

Professor da Universidade de Coimbra

Sugerir correcção
Ler 4 comentários