Um livro só nos soma

Comigo não foi à partida, foi na caminhada. Desfoquei dos desenhos, foquei nas letras

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Kate Ter Haar/Flickr

Ensinaram-me a gostar de ler. Como me ensinaram a ler.

Não sei quando começou. Olhava para as imagens e perguntava-me o motivo por que surgiam depois delas uns borrões negros.

Alinhados entre altos e baixos. Superiores e inferiores à linha.

- Não são borrões, são letras.

Desvalorizei a rotulagem.

- As letras somadas formam palavras, somadas formam frases, somadas enformam histórias.

Continuei a acreditar que os desenhos contavam mais do que a matemática dos borrões.

Num qualquer momento, a atenção voltou-se para a sombra escura.

Como podia ela partilhar espaço com o arco-íris nascido no riacho da aldeia? Com as casas de duas janelas e telhados colados? Com as verdes árvores geminadas? Como podia ela competir com a saia retalhada de vida da boneca? Com o seu rosto salpicado? Roubar as atenções do sorriso do príncipe? Do riacho nos olhos dele?

Como podia a sombra escura pintar tudo aquilo na nossa cabeça?

Quando aprendi a ler, desaprendi estas perguntas.

Aprendi outras tantas. Aprendo!

B. J. Novak mostrou há tempos que era possível fazer a garotada gostar de livros sem imagens.

Comigo não foi à partida, foi na caminhada. Desfoquei dos desenhos, foquei nas letras.

Mostravam-me mais. Mais arco-íris e riachos. Mais casas, janelas e telhados nelas. Mais tons de verde. Mais bonecas. Mais príncipes. Sorrisos.

Percebi então que os bonecos apenas me apontavam um dos tantos caminhos a seguir e que um livro nunca nos deixa no lugar onde nos encontrou.

Os meus pais orientaram-me para a leitura substituindo os bonecos nos livros pelas letras neles. Substituindo os bonecos por livros.

Depois da leitura, a escrita.

Um resultado simples. Quanto mais letras juntava, mais gostava de as espalhar no papel. Ainda não as sei alinhar, faltam-me a régua e esquadro de mais livros.

Depois da leitura, a releitura.

Que acontece em nós a cada virar de página, no fechar do livro. A releitura que acontece sempre que o lembramos. Que acontece quando nos acaba o ricochete.

Aí voltamos ao livro. Abrimo-lo na expectativa de que lá já viva outro. Outros moradores. Na procura de um nós novo para o ler.

Um livro não se acaba. Não nos subtrai, só nos soma. É essa a matemática dos borrões.

Depois da leitura, aquilo de que somos feitos.

Theodore Roosevelt disse ser uma parte de tudo o que leu. Eu acredito ser essa (por todas as partes que me dá) a melhor parte de mim.

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