O representante de Pasolini na terra

Rodeado de skaters, John Romão bebe o cálice amargo do capitalismo.

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Fernando Veludo/NFACTOS
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Enjoy! O mote da coca-cola que preside aos nossos destinos revela bem a contradição de Pasolini, entre o direito ao desfrute de qualquer cidadão do pós-guerra e o sacrifício pessoal, o amor aos pobres, a vocação franciscana, a noção de que o materialismo, o consumismo e o luxo nos condenarão para sempre. Quase no final deste espectáculo, o rapaz da telepizza entrega uma lata de coca-cola a John Romão, oficiante do culto, como se fora o corpo e o sangue do mártir Pasolini. Romão bebe o cálice amargo do capitalismo. Está consumado. Neste auto-retrato com espelho, skaters e rapaz do acordeão, o mestre de cerimónias incorpora a figura de Pasolini, que representa a conciliação impossível – mas corrente – entre prazer e dever, egoísmo e altruísmo, capitalismo e cristianismo.

O mesmo adolescente marginal que se quer salvar e acolher, quer-se comer. A saída para isto? A morte como redenção. Esta contradição está bem patente no jogo entre o impulso erótico, de criação, por um lado, e o impulso mortal, de destruição, por outro, que esta elegia a Pasolini expõe em cada um dos quadros, imagens vivas, enigmas, que a constituem. Os fragmentos e figuras de que o espectáculo é composto terão a sua lógica de encadeamento, mais facilmente apreensíveis para quem se lembrar do filme ou do livro originais. Para o espectador comum (duvida-se que o público presente na estreia seja leitor assíduo de Pasolini, mas quem sabe?) ficam os retábulos com alegorias da morte e do amor que enquadram o cerimonial de entrega ao destino, esperança de salvação. Desmontando a mitologia cristã, dando-lhe roupagens correntes, remisturando-a com ícones do consumo contemporâneo, e assumindo o lugar do mártir, Romão oficia um ritual de despojamento e sagração que prepara a fruição. Num mundo em que o gozo é obrigação, há que encenar a culpa para obter algum contraste. Todo o pequeno consumo é uma pequena morte.

A morte de Pasolini apresenta-se como uma continuação, um último tomo, da obra do poeta. Assassinado violentamente num cenário em tudo semelhante aos dos seus filmes, a sua vida e obra revelam-se enfim uma à outra. A aura das peças e filmes do autor italiano alimenta a aura da figura Pasolini, que se destaca, e tem sido tomada como inspiração. Consagrado, Pasolini pode e deve ser comido por todos para remissão dos pecados do homem. Ironicamente, o autor tornou-se um objecto de consumo, personagem central de obras mais ou menos elegíacas de outros. Esta é uma das limitações do espectáculo. Espelho de um espelho, não tem luz directa.

A outra limitação vem precisamente do que podia iluminar o espectáculo: os rapazes. A figura escolhida para reconstituir a tensão original com o outro – o grupo de skaters – é boa. São um símbolo universal de rebeldia, com ou sem causa. Imaginá-los parte desta última ceia é fazer jus ao legado de Pasolini. Santificados, dão bons objectos de desejo. Mas skaters vemo-los todos os dias à volta da Casa da Música, na Boavista. Vê-los em palco, performers semi-amadores, semi-profissionais, parecem não ter perigo. Se o tema e as ideias desta experiência parecem certeiros, a forma que assumiram deixa algo a desejar. A dependência da imagem de Pasolini e a mansidão dos skaters tiram contundência à obra.

Há ainda outra uma ironia na estreia deste espectáculo. Dos pergaminhos do anterior incumbente do Rivoli, Filipe La Féria, caução de uma carreira artística de outro modo duvidosa, consta, entre várias aventuras de teatro experimental, a encenação, em 1979, de A Paixão segundo Pier Paolo Pasolini, de René Kalisky. Com esta estreia voltamos a um passado, mas a um passado com mais futuro que os tempos recentes, de má memória. Não à toa, creio, é o skate, símbolo sério do regresso ao futuro, o objecto em cena. Este espectáculo, esta programação, têm o mérito de trazer para o centro da cidade o desassossego e a discussão sobre a arte e os valores do mundo, onde antes estavam os subprodutos da indústria cultural anglo-americana, na forma de musicais e comédias baratas, sustentadas pelo abuso do erário público e a exploração do trabalho dos outros. Respira-se de novo no Rivoli.

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