O novo simbolismo de Eötvös

Até na sua fuga para uma espécie de "oriente estético", a música de Peter Eötvös tem aqui paralelismos com as viagens e as experiências sonoras dos simbolistas.

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Jorge Vaz Gomes/São Luiz
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Um sofá, uma mesa, um bule, um espelho redondo. Basta isto na cenografia mínima de Lady Sarashina, um curioso projecto operático de Peter Eötvös, estreado na sexta-feira em Portugal. Lá atrás, no ciclorama, as cores vão mudando para cada um dos nove quadros que compõem a ópera. E é quase tudo.

Eötvös é conhecido antes de mais por ser um intérprete da música contemporânea, mas tem também um percurso próprio enquanto compositor. Nesta Lady Sarashina a sua música tem a sedução do maravilhoso, tentando abrir "uma porta para o sonho", como diz o compositor. E por vezes consegue levar-nos. Na encenação mínima do romeno Rares Zaharia, as soluções cénicas são simples e eficazes, e deixam a música flutuar pelos sonhos e viagens de Sarashina.

A ópera é baseada num texto japonês antigo de um anónimo do século XI. A Peter Eötvös interessou trabalhar musicalmente a fantasia e o onírico, numa linguagem nova mas acessível "a todas as idades". Jogos de timbres com grande variedade de cores, com simbolismos e ilustrações, em que a orquestra acompanha um quarteto de cantores.

A soprano japonesa Imai Ayane foi uma Lady Sarashina convincente, mas não deslumbrante. Ao seu lado destacaram-se as vozes de Carla Caramujo e Cátia Moreso e do excelente barítono Peter Bording. Caramujo, Moreso e Bording foram impecáveis não apenas na voz (com destaque para alguns pequenos e deliciosos trios vocais), mas também no rigoroso desenho teatral que lhes foi proposto, numa encenação que privilegia a construção de imagens fortes e bem desenhadas, mas que deixa algum espaço para o jogo dos cantores/actores.

É certo que algo do estilo de Zaharia parece já tornado cliché da ópera contemporânea (depois de Bob Wilson): para além das luzes no ciclorama, há panos de uma só cor que percorrem o espaço, e os figurinos de José António Tenente ajudam a impor a clareza visual (ajaponesada) que orienta esta Lady Sarashina. Mas a verdade é que esta produção, não surpreendendo, é certeira na tentativa de criar um mundo próprio, nem só real, nem só imaginário: um mundo sonhado. O espelho que persiste, pendurado, é o elemento mais forte deste onirismo. E nunca se parte.

A música (na excelente direcção de Pedro Amaral à frente da Metropolitana) acompanhou as imagens do futuro que naquele espelho enigmaticamente se reflectem. As notas dispersas do texto original, incluindo viagens, peregrinações a templos, leituras, testemunhos e sonhos contados, tornam-se na diversidade tímbrica de Peter Eötvös elementos de uma espécie de "novo simbolismo" que não está tão longe assim das experiências de um Debussy, há mais de cem anos. Até na sua fuga para uma espécie de "oriente estético" (o Japão persiste como imagem da distância e de "outro mundo" para os europeus), a música de Eötvös tem aqui paralelismos com as viagens e as experiências sonoras dos simbolistas. O deslumbre de outros sons, para outros mundos. Uma imagem invertida do destino, num espelho. A procura de novas harmonias num longe, quando o "aqui perto" parece ferozmente desarmónico. Mas que fica de Sarashina quando os sonhos acabam?

 

Pedro Boléo

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