A luta contra o crack faz-se nas ruas, Dilma e Aécio evitam o flagelo

O Brasil ignora a discussão do uso de drogas: “As pessoas acham que você está assim porque você quer.”

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Na Cracolândia, São Paulo Yasuyoshi Chiba/AFP

A primeira vez que Rogério viu Thiago aproximar-se, com uma oferta de “camisinhas” e um cachimbo de madeira para usar em vez da lata em que queimava o crack, começou a “gritar e a xingar para ele ir embora e nunca mais aparecer ali”. Foi há mais de cinco anos, num viaduto dos Baixos do Glicério, uma zona degradada no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, onde se instalou ao lado de muitos outros dependentes daquela droga. “Eles apareciam para falar com a gente e eu desconfiava de tudo, era contra. Então eles estavam a dar coisa para drogar mais a gente?”, lembra.

Hoje, Rogério e Thiago são amigos, ambos “conviventes” no espaço do projecto É de Lei, uma organização não-governamental que se dedica à redução de danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas e que actua junto de consumidores, ou usuários como são designados no Brasil.

Tal como Rogério, muitos outros dependentes de drogas e de álcool, mas também portadores do vírus da Sida, infectados de hepatite ou analfabetos e outras pessoas que se encontram numa “situação de rua”, frequentam o exíguo espaço do É de Lei no último andar de depauperado mas movimentado centro comercial chamado Galerias Presidente, cuja varanda abre para a Rua 24 de Maio, no centro de São Paulo. Ali, usuários ou não são sempre bem recebidos – podem frequentar uma ou várias das actividades oferecidas, incluindo oficinas de informática, fotografia e vídeo ou aulas de rap e hip-hop – ou simplesmente ficar a ver um filme, conversar ou sentir a companhia de outras pessoas.

“O espaço é aberto a toda a gente”, explica Thiago Calil, um psicólogo que trabalha no É de Lei há dez anos. A organização foi fundada em 1998 com o objectivo de promover acções na área da saúde pública, sobretudo em função do crescimento da infecção com HIV em consumidores de cocaína injectável, desenvolvendo acções terapêuticas para a prevenção e redução de riscos em situações de uso de drogas. A ideia do centro de acolhimento e convívio apareceu quando o trabalho de campo demonstrou a importância de existir um espaço de interacção social e desenvolvimento de várias actividades – a oferta foi-se alargando às vertentes culturais e educativas, tanto com os usuários como na sociedade, para diminuir o estigma e preconceito de uns em relação a outros.

O que o centro faz, resume Thiago, é “estabelecer pontes” e oferecer respostas às necessidades dos “usuários”. “É um serviço muito próximo das pessoas e sem exigências [por exemplo, de se cadastrarem como dependentes em listas oficiais]”, define. O espaço é livre: não é um local de tratamento mas de acolhimento. “Não temos uma relação de equipa e doente. Somos um grupo de pessoas que troca experiências, alguns com conhecimentos técnicos e académicos e outros com conhecimentos de vida”, explica. Os primeiros atendem as necessidades dos segundos: se a preocupação deles é com saúde, encaminham para as unidades; se tem problemas legais, prestam auxílio jurídico; se procuram reatar o convívio com a família, é o pessoal do É de Lei que tenta intermediar o contacto.

Cracolândia
Rogério, que ainda não largou a baixada do Glicério, onde entretanto construiu o seu “mocó” (uma espécie de um abrigo de rua), já não rejeita e até recomenda o trabalho de campo do É de Lei de que inicialmente desconfiava. “Desconfiava não, que eu ainda desconfio. Não acabou ainda esse drama”, brinca, numa provocação a Thiago. Agora, a organização tem focado o seu trabalho de contacto directo com usuários na chamada região da Cracolândia, um labirinto de barracas improvisadas e consumo a céu aberto que ocupa umas 15 ruas no bairro da Luz – e que é o objecto da tese que Calil está a desenvolver no âmbito do seu mestrado em saúde pública.

A Luz até começou por ser uma zona nobre da cidade. Com a construção do caminho-de-ferro, os barões e negociantes do café instalaram-se à volta da monumental estação ferroviária – no final do século XIX, a região dos Campos Elíseos era repleta de mansões. Com a crise mundial de 1929, a economia do café colapsou e os ocupantes mais ricos começaram a abandonar o bairro. O crescimento da cidade, com as famílias mais abastadas a trocarem a zona mais suja pelos novos bairros mais cuidados (que ganharam o nome de Higienópolis) acelerou o processo de esvaziamento. Nos anos 50, verificou-se uma transferência do negócio da prostituição do bairro do Bom Retiro para a Luz – esse foi o momento em que o bairro passou a ter associada uma certa imagem de degradação moral.

Uma década mais tarde, a construção da Rodoviária de São Paulo no local promoveu uma nova ocupação, com a instalação de pequenos comércios, hotéis e albergues, para migrantes e prostitutas. Quando a estrutura se transfere, nos anos 80, o bairro está desqualificado; resta o chamado comércio ocioso. “Quando começa a onda do crack, a Luz era o local perfeito para as coisas acontecerem: um ponto escondido dos moradores da cidade, que não tinham nenhum motivo para passar por ali, e que se encontrava em profunda degradação urbana e social”, explica Calil.

O trabalho da É de Lei na Cracolândia tem características bem diferentes do que é desenvolvido no centro de convivência da Rua 24 de Maio. A população que Thiago encontra aí “está num momento anterior” àquele de quem vem até ao centro. Ali, “o movimento é fumar pedra [de crack] sem nenhuma perspectiva”, refere – os profissionais do É de Lei procuram reduzir danos disponibilizando piteiras de silicone e distribuindo manteiga de cacau para os consumidores protegerem a boca, minimizando assim o risco de infecções. Depois de criarem um vínculo pessoal, procuram abordar alguns temas mais prementes para os indivíduos na rua, nomeadamente a necessidade de “cuidar de si”, de se alimentar, enumera. “Há uma coisa que é facto e não dá para iludir: as drogas estão aí e não vão desaparecer. Sempre tem e vai ter gente que vai usar. Nós não vamos ali para julgar mas para ajudar

Ao longo dos últimos anos, a Cracolândia foi alvo de várias acções – algumas bem repressivas – para desalojar os consumidores que ocuparam o local. No início deste ano, as autoridades municipais inauguraram um novo programa, chamado “De Braços Abertos”, que promove a inserção dos usuários na sociedade, sem que estes sejam obrigados a iniciar um tratamento ou desintoxicação. A autarquia disponibiliza alojamento em oito hotéis do bairro, oferece três refeições diárias e disponibiliza um trabalho de baixo salário (15 reais por dia), por exemplo, na limpeza das ruas. Até Agosto, o programa reuniu 422 inscritos, que segundo os dados oficiais diminuíram o seu consumo diário de crack em 50 a 70%.

Para Thiago Calil, apesar de ter algumas falhas e funcionar ainda de forma precária, o programa lançado pelo autarca de São Paulo, Fernando Haddad, é a “proposta mais interessante e inovadora” que já viu na cidade e bastante “positiva para pensar o cuidado baseado na redução de danos”. Ao nível estadual, distingue, a abordagem pública é totalmente diferente: o programa Recomeço implica o internamento obrigatório dos usuários em unidades de tratamento, muitas das quais são geridas por igrejas ou organizações religiosas.

Pelo centro de convivência do É de Lei passam uma média de 15 indivíduos por dia: são na maioria homens, adultos, de vários pontos do país e também estrangeiros, com os laços sociais totalmente rompidos e em situação de vulnerabilidade. “São pessoas que buscam uma mudança, tentando criar uma perspectiva”, descreve Thiago Calil. Alguns trabalham de forma informal; alguns hospedam-se em albergues.

Diego e Giovani
Num dia em que os participantes da oficina de vídeo foram registar imagens para a rua, o PÚBLICO encontrou Diego e Giovani na sala de informática, embrenhados cada um em conversas no computador. Giovani, de 25 anos, chegou do estado do Paraná há seis meses em busca de trabalho em São Paulo: conta-nos que no dia seguinte ia assinar o primeiro contrato da sua vida, como “pintor numa obra lá na Lapa”, e como imagina que deixará de ter tempo para frequentar o espaço do É de Lei, queria certificar-se que a sua conta de Facebook ficava actualizada e não deixava pendente nenhum dos assuntos que podem ser resolvidos pela Internet.

Giovani, que dorme num centro de acolhimento no centro da cidade, tem o sonho de ir trabalhar e morar para os Estados Unidos da América. “Nos States podia aprender a falar inglês com o sotaque de lá, para poder cantar melhor os raps que aprendo aqui com o professor Willys”, aponta. “Estudar inglês aqui fica caro e não vale a pena; se eu viver lá, vou aprender bem e nunca mais esquecer”, informa. Outro sonho é “ficar rico para viajar de avião e conhecer muitas coisas. E ir para a praia no Havai”, acrescenta.

No Paraná, lamenta Giovani, “não fui esperto, queria só curtir e vadiar. E no fim curti menos do que os que deram valor à caneta e papel, e que agora têm uma boa vida, têm carro, podem viajar. Mas vou dar a volta por cima”, assegura, animado com a perspectiva do novo contrato. “Quero ver se eu consigo ficar nessa empresa aí uns cinco anos, para comprar um carro”.

Em 2005, quando veio de Poços de Caldas, Minas Gerais, para estudar e trabalhar em São Paulo, Diego, hoje com 29 anos, era consumidor de maconha, haxixe e cocaína. Instalou-se no albergue Arsenal de Esperança, mas depois acabou “despregando das demandas desse trajecto. Cortei caminho e depois de um tempo encontrei e fiquei a conhecer essa droga”, conta, recordando o seu envolvimento com o crack. “Na rua, que era onde eu estava, era muito fácil, todo o mundo tinha crack para partilhar, ou então tinha um dinheiro para comprar...”, lembra.

As questões que estão directamente relacionadas com o consumo de drogas, e outras do mesmo universo temático – tráfico e crime organizado, políticas sociais e de saúde, segurança pública, justiça e sistema prisional, requalificação urbana – pautam pela ausência do debate da campanha politica para a presidência do país. Thiago reconhece que o interesse da sociedade nesse debate é relativamente limitado. “O Brasil é uma sociedade moralista e conservadora em relação às drogas. A maioria das pessoas vivem na ilusão de que é possível acabar com isso”, nota.

Além disso, prossegue, os dependentes e consumidores são “automaticamente classificados de vagabundo, quando não é pior”. “Para quem não mora na rua, você é um bandido ou um doente. As pessoas acham que você está assim porque você quer”, confirma Diego. “Não me incomodava tanto”, lembra “mas a sociedade sempre quer que alguém sirva de exemplo para os demais. Sempre será assim, são os termos da lei da selva, só sobrevivem os mais fortes”.

Calil reconhece, porém, que nos últimos tempos houve um despertar para a discussão do assunto, por pressão das organizações que trabalham na área mas também por algumas iniciativas politicas. Os jornais também começaram a abordar o tema das drogas como um problema social e um desafio para a cidade; e o facto de várias celebridades terem sido apanhadas a usar crack, mostrou que esse não era um consumo só relacionado à pobreza e marginalidade. Ainda assim, lamenta, “o debate continua muito pautado pela questão eleitoralista”, o que na sua opinião retira alguma legitimidade às posições assumidas.

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