O impasse

O impasse é uma forma de conservar o poder, o estatuto, os privilégios de quem os detém e deles não quer abdicar

O impasse é a situação que melhor define este início do séc. XXI na Europa. Não sendo propriamente uma ideologia, dir-se-ia que se manifesta como um sentimento colectivo que é consequência de uma percepção deste tempo. Porém, aparece como uma ideologia, como um modo de governação que age em múltiplos patamares de decisão – se decisão não fosse, aqui, um termo contraditório... – e opera por inibição ou por desleixo.

A falta de liderança não é já outra coisa que não a escusa que justifica este impasse. Na verdade, a ideia de um programa de alteração de um estado de sítio não pode recair sobre uma só pessoa, não pode ser fulanizada.

Na ausência de propostas programáticas de intervenção suportadas por ideias sobre como modificar o social, o cultural, o económico, etc. o impasse é deliberado. E é uma forma de conservar o poder, o estatuto, os privilégios de quem os detém e deles não quer abdicar. Assim, o impasse opera através de estratégias e de um vocabulário próprio. Quando, nas empresas, os departamentos dos recursos humanos deixam de utilizar o termo “trabalhadores” e o substituem por “colaboradores” estamos perante uma tentativa de erradicação da ideia basilar de que numa empresa o trabalhador vende a sua força de trabalho e as suas capacidades intelectuais a quem detém o poder económico.

Mesmo que nos casos mais felizes haja concertação entre trabalhadores e proprietários, é ainda de uma relação de subalternidade que estamos a falar. O slogan, impresso nas camisolas dos trabalhadores de uma empresa, “Nós adoramos o que fazemos”, é a marca do proprietário tatuada na farda, segunda pele do trabalhador.

Ora, isto já integra o vocabulário e o campo semântico com que operam os que vivem confortavelmente no regime do impasse. O grande exemplo disto é a redução de toda a linguagem e de todas as línguas a uma única, que é uma linguagem exclusivamente financeira.

Temos o exemplo curioso do escritor queniano Ngugi wa Thiong’o, autor da obra Decolonising the mind (1986). Decidiu ele, apesar do sucesso dos seus romances, abandonar a língua inglesa e passar a escrever na sua língua de origem (o Kikuyu), obrigando os editores a traduzi-lo para as línguas dominantes, nomeadamente o inglês. Esta decisão radical trouxe enormes custos, entre os quais, no início, a menor divulgação da própria obra e o risco de guetização da comunidade falante do Kikuyu.

Na actual situação de impasse – dominada pela linguagem imperial das estruturas governativas da União Europeia associada à linguagem financeira –, a hipótese de equacionar o uso de outra linguagem que não a destes neo-colonialismos europeus seria uma hipótese a considerar, por mais radical que possa parecer e com os custos que comportaria. Mas só valerá a pena se, no interior dessa nova linguagem – que não é a língua de qualquer um dos países mas uma língua outra que não esta língua do impasse - surgir uma energia propositiva, a possibilidade real de um devir. De outra forma, estaremos apenas, de novo, barricados no diagnóstico.

Ulrich, o Homem Sem Qualidades do romance de Robert Musil, é a versão alegre e apocalíptica do niilismo do início do século XX que anunciaria o futuro do europeu do século passado, esse europeu que se contorcerá depois nas pinturas retorcidas de Kokoschka e de Schielle, e na rugosidade brilhante da música de Schonberg, até se finalizar, depois de todas as decepções que se seguiram às várias revoluções, num impasse.

Este impasse, agora do pensamento, teve uma história encadeada de diagnósticos intelectualmente ricos e sedutores e oportunos, em muitos casos certeiros antes do tempo mas ainda assim diagnósticos, interpretações do mundo.

O que necessitamos agora é de ir além do que foram os pensamentos de Jacques Derrida, Alain Badiou, Thomas Piketty, de Byung-Chul Han, além do teatro de Sarah Kane, das propostas cénicas de Christophe Marthaler, dos filmes (onde os heróis são os subalternos) de Rainer W. Fassbinder ou de Pedro Costa.

Porventura não haverá uma linguagem ruidosa, afirmativa, programática, universal capaz de destruir este regime de impasse. Talvez haja apenas linguagens performativas regionais e minoritárias.

Nesta nossa situação mais complexa, paradoxal e difícil porque acontece numa fase da história da humanidade em que impera a globalização do capital – razão de fundo do impasse europeu – será possível actuar com acções, ideias, programas, com uma linguagem minoritária?

O grande desafio é justamente este e exige a criação – de novo – de vanguardas que não estejam preocupadas com a obtenção do aplauso universal, mas que sejam ásperas e precisas. 

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