O Brasil entre dois tiros

Nas vésperas da segunda volta das eleições no Brasil entra em cartaz nos cinemas Getúlio – o filme sobre o Presidente brasileiro que se suicidou há 60 anos. Não podia ser mais actual.

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Tony Ramos como Getúlio Vargas

O presidente que discutia Schopenhauer, adorava filosofia, ópera e teatro de revista, gostava de churrasco e fundou a Petrobras; o ditador que governou com mãos de ferro o Brasil, rasgou duas constituições, criou o salário mínimo e o direito às férias remuneradas, “o pai dos pobres”.

Nem o primeiro nem o segundo. O Getúlio Vargas que os portugueses vão ver em Getúlio, em cartaz desde quinta-feira, é o político atormentado nos seus últimos 19 dias de vida. Começam com a tentativa de atentado a um adversário político e assassinato de um major e culminam com o seu suicídio a 24 de Agosto de 1954.


“O que era fundamental não era se ele comia arroz com feijão. A narrativa que me interessava é o que é um gabinete, o que são as ‘tramóias’, o que são as quase conspirações e, se quisermos, podemos criar analogias com qualquer regime, em qualquer época, em qualquer país” – explica Tony Ramos, que interpreta Getúlio Vargas, em entrevista ao Ípsilon no Rio de Janeiro, antes de embarcar para Lisboa onde esteve na semana passada para a antestreia do filme. “Os portugueses vão assistir a um filme que retrata um período nervoso da História brasileira de um ex-ditador que volta ao poder eleito pelo povo. A partir da sua morte constrói-se uma segunda ditadura ferrenha que foi a ditadura militar” [O Golpe militar acontece em 1964, dez anos depois do suicídio de Getúlio Vargas].

Palácio, o interlocutor
Getúlio é a primeira ficção do realizador brasileiro João Jardim, que dirigiu documentários premiados como Janela da Alma, Pro Dia Nascer Feliz, Lixo Extraordinário, Amor?. Estreou-se no Brasil no Dia do Trabalhador, a 1 de Maio, e foi um recorde de bilheteria com 650 mil espectadores. Mais de 20 milhões de brasileiros viram o filme pela televisão em 24 de Agosto deste ano, dia que marcou os 60 anos da morte de Getúlio.

A ideia surgiu quando Jardim leu um livro sobre o suicídio do Presidente e pensou que esta história “tão contemporânea” nunca fora contada no cinema. “O filme toca em assuntos que são actuais no Brasil hoje” – explica João Jardim –, “a questão da política, da corrupção, o saber e não saber, o quanto convém ao governante não saber sobre o que se passa, o facto de você ter uma máquina política que trabalha a seu bel-prazer, fazendo o que quer independentemente do governante. Isso é assim desde que os portugueses chegaram ao Brasil. É isto que o filme tenta abordar do ponto de vista contemporâneo. Esta necessidade do brasileiro entender melhor como funciona a máquina do Estado, e não somente fazer o que a gente sempre faz, que é culpar quem está em cima. Não que o Getúlio seja inocente, pelo contrário. Existe uma cumplicidade entre o governante e a máquina que faz o que quer. O Gregório [Chefe da guarda do Presidente Getúlio Vargas] tem a iniciativa de mandar matar Carlos Lacerda [político opositor a Getúlio], o nível de corrupção em que Gregório estava envolvido é igual ao de hoje. O tempo todo você vê pessoas do segundo escalão envolvidas em escândalos enormes, em milhões e milhões de reais. Agora mesmo com a história da Petrobras [escândalo de corrupção envolvendo a empresa de petróleo brasileira]... Alguns servidores públicos organizam-se para se enriquecerem à custa do Estado. É aí que está o cupim [bicho da madeira] que acaba com o Brasil”.


Getúlio é um thriller político, um filme entre tiros. Começa com o tiro que mata um major da aeronáutica na tentativa frustrada de assassinato de Carlos Lacerda, opositor e inimigo político do então Presidente, e termina com o tiro no coração com que Getúlio, aos 72 anos, se suicida. Para o realizador, não havia saída.

“O filme conta a história de um homem que tem que tomar uma decisão que lhe daria a vitória. Ele muda tudo com o tiro que dá. Todas as verbalizações que faz no filme e que fez na vida real deixam claro que sabia que se renunciasse seria preso. O espectador vai percebendo que ele não tinha outra saída como figura política.”  
Reconstituir a alma do único presidente brasileiro que se matou, do homem atormentado nos últimos dias de vida no centro de uma das maiores crises políticas do país foi a tarefa do actor Tony Ramos, 66 anos, que completou este ano 50 anos de profissão. Durante mais de 50 dias filmou no Palácio do Catete, antiga sede do governo e residência dos presidentes brasileiros quando a capital do país era o Rio de Janeiro. Foi ali que Getúlio governou e morreu. “Estou acostumado a set locations, gravei novelas na Grécia, na Itália, na Índia – conta.

“Fiz Guimarães Rosa no Sertão Veredas, quando interpretei o Riobaldo, dentro do sertão. São sets que dão uma qualidade acessória de composição da personagem muito forte. Não dá para esquecer. Mas filmar a história de um homem que existiu no gabinete de trabalho dele, com a cadeira dele, andando pelos corredores em que ele andava, na mesa de jantar onde ele comia, as loiças de porcelana que ele usou, usando o cortador de charuto que era dele, dormindo na cama do quarto dele, com o guarda-roupa, a mesinha, a arma com que ele se matou... A diferença é absoluta na construção da personagem. Completamente diferente de estar num óptimo estúdio. Havia cenas em que me levantava para fumar o charuto e tinha que olhar para os jardins do palácio e a personagem vinha com tanta força, tomado pela pirâmide enlouquecida de decisões que tinha que tomar, todo mundo falando, os generais chegando, os comandantes da marinha chegando, da aeronáutica, os políticos, o vice-presidente... ‘Já não está na hora do senhor deixar o poder?’ Ele vendo a fogueira das vaidades políticas. Ele era uma raposa política, era um grande articulador político, foi ele quem fez Juscelino Kubitschek [Presidente entre 1956 e 1961]. Então você imagina o que é tudo isto tendo como grande personagem e tendo como grande interlocutor o próprio palácio. Não era apenas uma personagem coadjuvante como cenografia. Passou a ser meu interlocutor”.

Trabalho jornalístico
Foi na véspera do sexto aniversário do actor que Getúlio Vargas morreu. Tony Ramos lembra-se da avó deixar cair a tigela do bolo quando ouviu no rádio a notícia do suicídio. “Morreu o Dr. Getúlio” – disse emocionada. O menino António achou que um médico tinha morrido. Nunca mais esqueceu o dia da morte de Vargas. Construir a personagem quase 60 anos depois foi um dos grandes desafios de sua carreira. Menos pela parte técnica, apesar das duas horas e meia de maquilhagem por dia e de vestir a roupa de corpo inteiro que o engordava 30 quilos ou rapar diariamente o cabelo.

“Mesmo antes de começar a filmar, reuníamos, eu, o João Jardim e o director de fotografia Walter Carvalho, para falar sobre documentação. Se hoje eu quiser filmar a vida do Lula ou do Sarney [Lula da Silva e José Sarney, ex-presidentes do Brasil] encontro vídeos e registos informais dos dois num bate-papo, jogando futebol, numa conversa... Tenho o lado coloquial destas pessoas. Do Getúlio, não. Não há gravações pessoais. Só há discursos em inaugurações de uma fábrica ou dos jogos da primavera. ‘Trabalhadores do meu Brasil’, que era como ele começava os discursos políticos [imita a voz de Getúlio]. Mas eu não tinha a voz, o padrão de voz coloquial. A partir de discursos fui criando a voz deste homem, no seu desespero, nos seus últimos 19 dias, nos 19 dias mais graves da história política brasileira. Ao mesmo tempo comecei a consultar os documentos que o João Jardim me passava. A partir de documentos do Museu da República, depoimentos de amigos, de gravações com Lutero, o filho mais velho que era médico [interpretado por Marcelo Medici], da filha Alzira Vargas [interpretada pela actriz Drica Moraes], com quem ele viveu e trabalhou o tempo todo. A partir daí comecei a criar e abstraí do que sabia sobre ele: um ditador, nunca esqueçamos isto, um ditador que perseguiu, mandou torturar mas que, deposto pelos militares, exilado dentro de seu próprio país, volta eleito pela maioria do povo. Quer figura mais contraditória para um actor representar? Há no filme uma sequência que é um dos momentos mais enigmáticos deste homem. A filha diz para Getúlio dar a ordem para chamar os militares no quartel e ele diz: ‘Não faça isso, eu já rasguei duas constituições, não vou rasgar mais uma vez.’ Ou ainda: ‘nunca vieram até mim pedir alguma coisa por este país, só para uso próprio ou para terceiros’. É uma frase documental está lá no Museu da República. Isto é forte demais. Faz analogias com qualquer época.”


A investigação histórica era essencial para o realizador João Jardim, que considera ter feito um trabalho jornalístico. “Não estou dizendo que aquilo seja verdade” – explica – , “a verdade as pessoas nunca vão saber. Mas pesquisei ao máximo. Tudo que está no filme está corroborado. Eu não queria tomar partido. Não queria colocar a mão do realizador para macular a História. Tirei conclusões a partir de análise de documentos, fotografias, imagens. Vários pormenores eram polémicos. Como o tiro que teria ou não atingido o pé de Carlos Lacerda no atentado. Levou o tiro ou não? Existem fotos tiradas na noite do crime em que ele aparece com o pé enfaixado e uma mancha de sangue. Para aquilo ser uma maquilhagem teria que ser algo muito ardiloso. Lógico que o pé dele estava ferido. Se foi a arma dele ou a arma de outra pessoa não há como saber, mas ele estava com o pé ferido. Tive que ler mais livros, colher mais depoimentos, analisar mais documentos para poder fechar com uma versão. Até o próprio facto de Getúlio ter-se suicidado, isso é contestado. Eu nunca tive dúvidas mas… tudo foi baseado nos depoimentos que ouvi, na documentação, foram dias tensos e emocionantes e eu queria fazer um filme que tocasse o público porque achava que era uma história importante para ser contada. Mas o filme desde o início é o ponto de vista do Getúlio, de como ele se sentia”.


E como ele se sentia? Foi o trabalho mais difícil para Tony Ramos. “Getúlio é uma personagem iconográfica, histórica, não significa que o actor seja partidário dela. Cumpre ao actor entender aquele momento histórico. Getúlio morreu dizendo que nada sabia e os documentos que tínhamos em mãos corroboravam esta versão”. O actor costuma dizer que há três coisas que mais ama na profissão: interpretar personagens que causam inquietação, que provocam emoção e entender as entrelinhas da fala da personagem. “Uma personagem nunca é aquilo que o escritor escreveu, que o actor, seu colega, vai dar como deixa para você falar. Você tem sempre que entender o que está nas entrelinhas. O que se lê nas entrelinhas da personagem Getúlio? Ódio, dor, ira, desespero e nada podendo ser manifestado porque ele tinha que ter uma habilidade política naquela grande crise. Eu só quis entender quem era o Getúlio, fazer o Getúlio e ponto."

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