Parar para mentalizar

Nos dias de hoje, as pessoas só se preocupam em viver, viver, viver, e não se dão conta da importância que tem parar para mentalizar

Foto
Dominic Ebenbichler/Reuters

Os dias passam por nós carregados de desgraças, tragédias ou meros acidentes que nos sulcam os percursos. Os profetas do apocalipse gastam quantidades industriais de tinta e saliva, fazendo-nos crer que nada está bem e que tudo tende a ficar pior. Os jornais enchem-se de parangonas que nos atiram, inevitavelmente, para um negrume que não devia, nunca, ser o nosso.

Se não é o Crato, é a PT; se não é a PT, é o Marinho Pinto; se não é o Marinho Pinto, é o Passos; se não é o Passos é o Estado Islâmico; se não é o Estado Islâmico, é o Pistorius que só vai dentro por cinco anos; se não é o Pistorius que só vai dentro por cinco anos, é toda e qualquer outra coisa que salpique a nossa paisagem cibernético-noticiosa.

Mas existem também as chatices, maiores, do quotidiano. Ora é a Rita que não passa cartão ao já desesperado Zé, ora é o Pedro que está prestes a pirar-se daquele trabalho por causa do tacanho patrão, ora é a dona Isaura que continua a atirar pelos de gato sobre a nossa roupa estendida ao vento. Já para não falar, naturalmente, dos cifrões que teimam em abalar carteira fora rumo sabe-se lá onde.

Perdemos então o sentido de gratidão? Tendencialmente pessimistas, parecemos deixar-nos cair nas angústias do que não está bem, esquecendo por completo todos os eventos que não são agruras. Eddie Vedder tem uma das frases que me serve de mote à vida: “No matter how cold the winter, there’s a springtime ahead”. Permitam-me a tradução livre: não obstante o rigor invernoso, há toda uma primavera prestes a florescer. Mas mesmo durante o inverno, há belezas que, de outra forma, não poderíamos observar.

Faltam as graças pelas limonadas à beira-mar, pelo pingo de chuva no alto da pinha, pela alegria de uma gargalhada num sítio inaudito, pela música que nos é cantada ao ouvido ou pelo livro que alguém escreveu, de propósito, para que o pudéssemos ler numa viagem de comboio. Faltam os obrigados a nenhures por todas as coisas nas quais não temos responsabilidades.

Não advogo um optimismo cego, talvez as fugas não devam ser o nosso forte. Mas um distanciamento para contemplar os pratos da balança não pode ser visto como uma perda de tempo. Uma grande amiga, psicóloga, disse-me algo que me pareceu mais acertado que uma seta no centro de um alvo de cortiça: nos dias de hoje, as pessoas só se preocupam em viver, viver, viver, e não se dão conta da importância que tem parar para mentalizar.

É certo que há o fim: um horizonte nebuloso mas certo de que este pequeno nada há-de terminar. Andamos todos perdidos em igual medida, percorrendo um caminho que, provavelmente, há-de ter um destino em forma de zero. Até lá, é ir vendo no que dá, sempre com os olhos mais postos neste sol que segue brilhando que nas enxurradas de outros tempos.

Sugerir correcção
Comentar