Manhas e ciumeiras no Palácio de Queluz

O Concerto Campestre deu um bom exemplo de que o estudo e a interpretação, a história e a prática musical actual são actividades que se complementam.

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Joana Seara construiu uma Angelica tão leve como provocante Luís Duarte
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D. Maria Francisca Benedita por Miguel António do Amaral, c. 1773 Cortesia: Museu do Hermitage

O estudo da música do passado não é uma curiosidade para ratos de biblioteca. Em Portugal, graças a investigadores e a centros de estudos musicais, têm-se descoberto e investigado nas últimas décadas as obras de alguns dos mais significativos compositores portugueses. E muitos desses trabalhos não tem ficado na gaveta: têm sido decisivos não só para conhecer a história, mas para alargar a possibilidade de apresentação pública de obras de grande interesse antes praticamente desconhecidas.

É certo que João de Sousa Carvalho, um dos maiores compositores portugueses da segunda metade do século XVIII, já não é um desconhecido entre nós. E teve a sorte de ter grande parte das suas obras guardadas intactas na Biblioteca da Ajuda, ou não tivesse sido um dos compositores da corte mais apreciados do seu tempo. As suas óperas e serenatas têm sido, a pouco e pouco, reveladas por alguns dos melhores intérpretes da música antiga em Portugal. E é importante saber que o estudo e a interpretação, a história e a prática musical são actividades que se complementam, e se estimulam dialecticamente, tanto como a audição e a reflexão crítica precisam uma da outra.

Vem isto a propósito da apresentação pelo grupo Concerto Campestre de uma Serenata de João de Sousa Carvalho, no Palácio de Queluz, dirigida pelo oboísta e investigador Pedro Castro. O local do concerto é certeiro para voltar a apresentar esta obra dedicada à irmã da rainha D. Maria I, de seu nome Maria Francisca Benedita, na ocasião do seu aniversário. Em vez de "parabéns a você" (que não existiam...), o compositor fez uma serenata, uma peça dramática (mas em geral não encenada) com recitativos "secos" e acompanhados, árias, duetos e um coro final de carácter festivo. A história nada tem a ver com a aniversariante, centrando-se num pequeno enredo amoroso com jogos de sedução e ciumeiras desvairadas, numa versão curta de um libreto de Metastasio.

A interpretação do Concerto Campestre foi um exemplo de um trabalho apurado, no cuidado com o equilíbrio tímbrico e dinâmico, na clareza da linguagem (fruto de uma prática interpretativa contínua, mas também de um estudo detalhado da partitura), com muito poucos desacertos rítmicos graças à boa direcção de Pedro Castro. E teve ainda a sorte de contar com um conjunto de solistas de muito boa qualidade, algo que ficou claro logo desde as cenas iniciais, com Joana Seara a construir uma Angelica tão leve como provocante e a contralto catalã Lidia Vinyes Curtis a cantar maravilhosamente a primeira ária em que uma sombra de ciúme gira em torno do apaixonado Medoro. Foram elas também a acabar a primeira parte com um magnífico dueto "Ah, não me digas, ingrato amante, que inconstante é o meu amor e que infiel eu te sou", onde a arte de João de Sousa Carvalho foi bem audível graças a estas duas excepcionais cantoras.

Muito bem estiveram Luísa Tavares e Sandra Medeiros, em personagens secundárias (os amantes "pastoris" Tirsi e Licori). E também por ali passa um herói antigo quase em caricatura - Orlando - a que o tenor Fernando Guimarães conseguiu dar força e graça, apesar de parecer defender-se um pouco nos agudos. Fernando Guimarães resolveu muito bem a passagem final, que implica uma súbita mudança de carácter da música e do texto: Orlando está em fúria, ardendo de ciúme e sentindo-se traído pelas manhas de Angelica. Mas, subitamente, vê uma luz: "Mas qual astro benigno é que entre o horror da noite brilha para mim?" O astro é Maria Benedita, claro, e as fúrias de Orlando passam a ser vivas à irmã da rainha e a toda a descendência real. Meio a sério, meio a brincar. Mas podemos levar a sério (e emocionar-nos) com Medoro quando canta uma ária à lua: "Bela Diva, amiga das sombras, vê com puros olhos no perigo o nosso amor". E assim se fazia uma serenata para a realeza. Ora toma lá, bem feita.

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