Caligrafe legivelmente

A caligrafia tornou-se de uma arte perdida, especialmente aqui, no Ocidente, especialmente agora, neste presente-futuro em que vivemos

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Caleb Roenigk/Flickr

Conheço uma professora de português que começa todos os seus testes com a expressão: “Caligrafe Legivelmente”. Enquanto escrevo estas palavras, ela está na sala ao lado, a tentar instruir os seus alunos do 10º ano nas idiossincrasias da lusofonia. Ouço-a falar através da parede fina.

Na verdade trata-se mais de um pedido do que uma directiva, caligrafe legivelmente, por favor, se fizer o favor. Para a maior parte dos alunos o legivelmente até se percebe mas caligrafe talvez seja algo digno de receber honras de motor de busca.

Não podemos culpá-los. A caligrafia tornou-se de uma arte perdida, especialmente aqui, no Ocidente, especialmente agora, neste presente-futuro em que vivemos. Depois das máquinas de escrever vieram os teclados e os processadores de texto e depois disso os écrans tácteis que transportamos connosco para todo o lado. Talvez no futuro alguém escreva saudosamente sobre a arte perdida de escrever fisicamente num “touch screen”, numa altura em que os nossos pensamentos já dialoguem com as máquinas livremente, sem recurso a estes apêndices simiescos de interface com que a evolução nos dotou e a que chamamos de mãos. Mas esse tempo ainda não chegou. Se calhar nunca chegará. Se calhar o apocalipse zombie chegará primeiro.

Mas para já a escrita manual ainda cumpre minimamente o seu papel na transmissão do conhecimento, só a beleza da forma desapareceu. Muitos, como a professora de português, já respiram de alívio se conseguirem perceber o que os seus alunos escrevem. No grande plano das coisas o legivelmente supera claramente o caligrafe.

É pena. Compreende-se que conteúdo seja mais importante que a forma mas mesmo assim. Mesmo assim, doí-me a alma que estejamos a perder aos poucos o artesanato da palavra escrita.

Teremos então nos braços, e na consciência, toda uma geração que falhou aprender a beleza da palavra escrita, criada pelas próprias mãos, a partir da voz silenciosa que vem de dentro. Não chegarão a sentir a falta do atrito entre a caneta e o papel ou o cheiro a tinta de uma página cheia de palavras caligrafadas.

A ironia final é que escrevo estas palavras num teclado de computador e a minha caligrafia já não é o que era.

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