Escrever em vez de chorar

A Casa Azul, primeiro romance de Cláudia Clemente, é o acerto de contas com as memórias de uma arquitecta que também faz filmes, fotografa e escreve para teatro.

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MIGUEL MADEIRA

A Casa Azul nasceu da vontade de Cláudia Clemente cumprir o desejo que o pai manifestara de a ver escrever um romance. Para cumprir essa promessa, entrou numa corrida contra o tempo que infelizmente perdeu. Doente, o pai morreu antes de poder ler o livro. Terminá-lo passou a ser uma obsessão. “Uma forma de fazer o luto” confessa-nos a autora: “Não chorei, escrevi."

Antes de perder o pai, já Claudia tinha perdido um pedaço de si e da família, uma casa azul no Porto, o espaço onde nasceu e se tornou adulta: “Tenho pesadelos com as escavadoras, vejo-as revolver a terra e a arrancar as plantas, vejo os caterpillars a pisarem os canteiros, oiço o ruído impiedoso das gruas e dos maços dos pedreiros a partirem as paredes entre as quais cresci. Com cada centímetro daquela casa morre parte de mim” (p. 13). Foi um processo dramático, recorda: “Durante anos temos um lugar físico que sabemos que está ali como guardião, como caixa-de-ressonância das nossas memórias. E de repente tudo isso se altera e as memórias ali guardadas deixam de ter um lar, dispersam-se. Foi para que não se perdessem no ar que escrevi este livro.” A casa azul, um bom exemplo da arquitectura que se fazia nos anos 50, devedora da famosa Escola do Porto, deu origem, juntamente com o vasto jardim onde se integrava, a um condomínio privado. Claudia deixou de passar naquela rua a dois passos da Rotunda da Boavista.

Ficou a matéria-prima das memórias alojada nos seus sentidos, à qual juntou imaginação: “Há uma zona que fica no meio entre a realidade e a fantasia. Eu escolho essa zona. Não consigo conceber noutro território. Acho que há muitas mais coisas para lá daquelas por onde nos movemos. Só isso é que para mim justifica o processo de desdobramento dos factos e das memórias que é escrever um romance. Por exemplo, no livro, uma das personagens, tal como a minha mãe, faz uma viagem de comboio a Paris em plenos anos 60. No comboio, viajava perto um homem que segundo ela aparentava pertencer à PIDE. Não era o caso, veio a descobrir. Mas eu decidi que sim, porque me dava jeito que ele fosse da PIDE e que se apaixonasse pela minha mãe. A parti daqui o processo acaba por ser invertido, é a ficção que triunfa, embora os elementos autobiográficos se insinuem e espreitem.”

A Casa Azul compõe-se de vinhetas que se sucedem irmanadas em capítulos com os nomes dos quatro elementos. Essa opção arruma uma matéria volátil em compartimentos mais físicos: “Comecei a desenhar as personagens e só depois é que as arrumei em elementos. Alguns trechos podem ser lidos como pequenos contos autónomos.”

A casa vai-se assim reconstruindo à nossa frente por uma romancista estreante que é arquitecta de formação. O fogo é apagado pela água, o ar transporta a terra para outro lugar, onde pode brotar vida ou ser queimada pelo fogo. As quatro personagens principais enredam-se num aparente loop que é interrompido porque os fios da narrativa acabam por se atar e mostrar a saída que, por causa deste efeito, não é unívoca. São os leitores, operários da construção, quem controla o processo: “Quis que cada pessoa fizesse o seu percurso dentro do livro. Cada um terá o seu final.”

 

Fantasmas

Há muitos primeiros romances que soçobram por excesso de elementos. Há outros que se desmoronam por excesso da autobiografia. Em A Casa Azul isso não acontece, apesar dos riscos que autora enfrentou. Há um episódio que, intuímos, tinha mesmo de ali estar: “As pancadas atingiam-me no pescoço, no peito, de lado, na barriga. Uma das mãos segurava-me, a outra espancava-me. Não gritei, nem sequer protestei, nos primeiros minutos.” (p. 120). Um certo glamour romanesco que assoma no livro fica definitivamente comprometido: “Não me podia calar. No meu caso, a violência doméstica pertence ao passado. Poderia e teria sido mais fácil contornar esse episódio da minha vida. Mas não o quis fazer pela actualidade do tema. E é evidente que se percebe que sei do que estou a falar.”

No dia em que encontrámos Cláudia Clemente, algumas das fotografias da sua nova exposição, Playing with Myselfestavam a chegar às paredes da Galeria ArtInzo, em Lisboa. São representações com uma mulher no centro, ela própria, que recriam e exorcizam fantasmas de perversão, de resistência, de heroísmo. Pequenas ficções, tal como os contos que escreveu, e que por sua vez complementam os filmes documentais que realizou, a peça que escreveu: “Cada fase da minha vida, pede uma forma de me exprimir diferente. Às vezes, como é o caso agora com as fotos e o romance, essas formas sobrepõem-se."

Mas é tudo obra da mesma arquitecta.

 

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