Berlusconi, a Sicília e a máfia: uma história de amor e de oportunidades

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Silvio Berlusconi, o homem que mais anos esteve no poder nas últimas duas décadas em Itália, não inventou a máfia. Inventou a televisão privada no seu país (com meninas quase nuas a atravessarem noticiários) ou os condomínios que importou da América e lhe permitiram iniciar um império; inventou um partido-empresa que reconstruiu a direita (estilhaçada pelos juízes do Sul que no início nos anos 1990 expuseram as relações entre a Democracia Cristã e a Cosa Nostra), inventou o político-empresário.

Muitos biógrafos dizem que Berlusconi mudou a Itália (estupidificando-a) antes de a conquistar. E isso é verdade, como é verdade que Berlusconi, antigo cantor e animador de cruzeiros, sempre teve como maior dom a capacidade de ver uma oportunidade e não a deixar escapar. A Itália que já existia, a máfia, uma Sicília onde a maioria nunca acreditou na autoridade e no Estado – tudo isso faz parte da grande oportunidade que Berlusconi viu e agarrou.

“Decidi entrar na vida pública porque não quero viver num país não liberal, governado por pessoas que já falharam política e economicamente no passado”, anuncia, no fim de 1993, numa comunicação que fez transmitir em todos os seus canais e que Franco Maresco inclui em Belluscone. Pouco depois, apresentaria um ambicioso plano: 12 propostas onde se incluía a construção de uma ponte a ligar a Itália continental à Sicília, no estreito de Messina, projecto megalómano enunciado como a empreitada mais exequível do mundo, com plantas e desenhos e tudo. A seguir, ganhou as eleições.

As ligações à máfia vinham dos anos 1970, quando Berlusconi pediu protecção e encontrou na Cosa Nostra (a máfia siciliana) o melhor parceiro de negócios (vieram da máfia os milhões para os canais privados). “Entre o Estado e a máfia, Berlusconi escolhe a última porque sabe que é mais forte e, por isso, mais eficaz a proteger a sua família. No fundo, se pensarmos bem, não é esta sua intolerância inata por qualquer tipo de autoridade a torná-lo tão popular e amado entre os sicilianos?”, pergunta Maresco.

O que Berlusconi (um homem do Norte, mas habituado a fazer pela vida, como as gentes do Sul) fez foi alargar ao país um certo modo de fazer as coisas, bem conhecido dos sicilianos. Porquê votar em Berlusconi, perguntavam incessantemente os jornalistas em 2001, 2006 ou 2008, porquê, com a economia a cair, com tantos escândalos e processos judiciais? “Ele é o maior empresário do país, pelo menos pode criar empregos”, ouvia-se, não poucas vezes, como resposta. Erik, um dos cantores populares do filme de Maresco dedica-lhe um tema: “A canção fala de um jovem desempregado que sonha ganhar a lotaria. A lotaria, para mim, hoje, é conhecer Berlusconi, um dos homens mais poderosos do mundo”. Simples.

O herói do filme, Ciccio Mira, empresário de entretenimento que organiza festivais de rua onde se cantam odes a Berlusconi e às vezes se lêem mensagens para mafiosos presos, mais um programa que serve para que se leiam estas mensagens, por vezes recados que um cappo envia a outro da prisão, é uma espécie de Berlusconi bom. Alguém que “arranja problemas” mas os resolve, que admira Berlusconi mas que, ao contrário deste, tem uma ética – a sua, “a da máfia antiga”, “que não matava crianças nem velhos” e resolvia mesmo problemas e arranjava trabalho aos pobres, como a Itália esperou que Berlusconi fizesse.

A Itália de Berlusconi é uma Itália de meias verdades e muitas mentiras, de muitos não ditos e alguns deslizes. Como este filme, onde se consegue a proeza de colocar num trono o senador siciliano Marcello Dell’Ultri, que foi colaborador de Berlusconi e condenado por associação mafiosa, e colocar-lhe todas as perguntas às quais ele não responde e, depois, quando ele começa a deixar escapar verdades, deixa que o som se avarie. O gravador que deixa de gravar, os casos que prescrevem, a impunidade. Como Berlusconi, a jurar durante anos que nunca conheceu Vittorio Mangano, o mafioso condenado por assassínio. Um dia, o antigo chefe de Governo lá disse que Mangano tratava dos cavalos e “acompanhava as crianças à escola”, negando saber que pertencia à Cosa Nostra. Como Ciccio, a negar conhecer mafiosos que já apresentara ao realizador para depois acabar a contar dos serões lá em casa, a deixar escapar verdades, genuíno.

Belluscone começou a ser feito em 2011, ano em que Berlusconi foi obrigado a deixar o Governo para cuja presidência tinha sido eleito, e terminado já na Primavera deste ano. É o fim de festa de Berlusconi e da Itália que ele promoveu. A Itália onde ganha quem tem dinheiro ou armas, a mesma Itália onde o realizador não tem dinheiro para alugar o teatro onde entrevista Dell’Ultri e consegue fazê-lo porque os salesianos que o gerem sabem que é para o senador e tornam tudo possível.

É uma Itália que acaba – e no fim do filme, surgem os rostos da nova: Beppe Grillo, o ex-palhaço que criou um movimento de massas e abalou o sistema partidário (e cuja formação se tornou na mais votada na Sicília, em 2012), como Berlusconi fizera 20 anos antes; e Matteo Renzi, primeiro-ministro desde Fevereiro, que ainda tem de provar ser mais do que um Ken com novas ideias sobre fazer política, que aqui surge aplaudido num programa de entretimento. É uma Itália que ainda não sabe para onde vai. Ciccio foi detido em 2013. Há nostalgia. Porque a Itália em que tudo de mau era possível também era uma Itália onde tudo se arranjava, onde a magia acontecia. O futuro ainda não é garantidamente melhor.

                                

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