A Fumaça Preta liberta

Um luso-venezuelano chamado Alex Figueiras descobriu o Tropicalismo em Amesterdão. Acabou reunido a dois ingleses, um brasileiro emigrado em Nova Iorque e uma paulista. Confirma-se: o mundo é um sítio mais bonito quando as gentes se encontram e se misturam.

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Tudo começou com uma versão improvisada no momento, cantada em português com sotaque brasileiro, do clássico do garage-rock The witch, dos The Sonics. A bruxa, então, gravada num pequeno estúdio em Amesterdão por um inglês, um brasileiro, e um português nascido na Venezuela. É mesmo verdade, o mundo é um sítio mais bonito quando as gentes se encontram e se misturam. Os Fumaça Preta de Alex Figueiras, que se instalam nesse espaço sem fim das produções dub para gastar energia garage-rock e suar debaixo de calor tropicalista, são a enésima prova (em forma de disco) dessa evidência. Confirmámo-lo em Julho, quando a banda actuou no festival Milhões de Festa, em Barcelos. Quem não esteve lá pode comprová-lo agora.

Fumaça Preta, o álbum de estreia da banda, saiu há duas semanas pela prestigiada editora britânica Soundway, onde encontramos os luso-angolanos Batida ou preciosas compilações de música de outros tempos e outras latitudes como Sound of Siam ou Ghana Special.

Em Barcelos, vimos uma banda que subiu a palco com batas azuis vestidas e que, depois, guiada pela voz gritada, histriónica, e pelo ritmo do baterista Alex Figueiras e do percussionista que os acompanhava, fez soar o wah-wah da guitarra e pôs o órgão Hammond a dançar para celebrar A bruxa, mulher perdição, e para explicar como esta música com América Latina, Estados Unidos e Caraíbas dentro anda pelo mundo de “pupilas dilatadas”, muito grandes e despertas para tudo. Ao vivo, tudo é excessivo, ruidoso, físico. Em disco, mantém-se essa intensidade quase delirante, exposta nos berros do amante despeitado de Vou-me libertar, primeiro single do novo álbum (onde não cabe A bruxa, a canção de apresentação). A nitidez é, porém, outra: Fumaça Preta é, afinal, obra de um obsessivo.

Alex Figueira, com raízes madeirenses, nasceu na Venezuela e apesar de ter vindo para Portugal na adolescência para estudar Publicidade & Marketing, sempre teve uma certeza. “Queria fazer música e tinha isso mais ou menos resolvido”, dizia ao Ípsilon antes do concerto no Milhões de Festa. Tocou em várias bandas em Portugal, das quais a de maior destaque tinha por nome Contratempos, banda de ska clássico. Quando se mudou para Amesterdão, procurava um lugar na música, procurava fugir dessa “coisa horrorosa” que sentia, a de que em Portugal “ser jovem era um peso, uma coisa negativa”: “Não podia passar o resto da vida em estágios cujo pagamento era o subsídio de almoço."

Eis então perante si a efervescente Amesterdão. Ali fez muita coisa. Criou um estúdio, a que chamou Barracão, uma editora, a Music With Soul Records, e começou a organizar as festas Vintage Voodoo Experience. Mas Amesterdão não se revelou exactamente o El Dorado. “Não era bem o que estava à espera. A oferta cultural é incrível para a dimensão da cidade, mas isso não corresponde à quantidade de músicos." De músicos a fazer a música que lhe interessa, entenda-se. “O indie tem muita força e estão muito bem organizados, mas o que rebenta com tudo é a electrónica. Há mais DJ do que músicos e há muitos músicos que deixaram de tocar para serem DJ." Ora, nem uma cena nem outra interessava a Alex Figueira.

Descobrira a música brasileira, no sentido de lhe investigar a história, de mergulhar nos seus discos e na sua genealogia. E era a ela, ou melhor, a uma nova ramificação dela, que se queria dedicar – uma que incluísse o garage-rock de uma das suas bandas preferidas, os supracitados Sonics, a música latino-americana que absorvera crescendo na Venezuela ou a música africana “de onde tudo nasceu”. Explica: “O meu último ano em Portugal já ia muito nessa direcção, mas foi em Amesterdão que explodiu a minha paixão”, conta no seu jeito frenético de conversar, com as palavras quase a atropelarem-se perante as diversas ideias que quer comunicar. Para Alex Figueira, existem três momentos determinantes na música brasileira. A bossa-nova, “que não parece novidade até que nos apercebemos da sua dimensão revolucionária”, o Tropicalismo dos anos 1960 e 1970, e o mangue-beat dos anos 1990. “O que me desperta mais atenção são os dois últimos”, os mais obviamente fusionistas, diz. Mas foi o Tropicalismo de Mutantes, Caetano Veloso ou Gilberto Gil que lhe preencheu o coração: “Percebi que era possível juntar o folclore com centenas de anos a uma coisa ultra-moderna vinda de fora, como o rock psicadélico." Percebeu como poderia fazer nascer os Fumaça Preta que ainda não existiam.

 

Escavar até não poder mais

Ouvimos as primeiras palavras do álbum de estreia agora editado. Surgem sobre percussões, um baixo sintetizado e prato-de-choque chocalhando o ritmo. “Meu nome é desconhecido, porque eu venho do infinito/ O Fábio um dia me falou/ o amor não tem nome, o amor não tem cara/ O mínimo é o máximo/ da evolução das moléculas sagradas." Raul Seixas estaria orgulhoso – principalmente quando, depois daquelas palavras, entram em cena wah-wahs assaltando todo o espaço sonoro. Ao longo das dez canções do álbum, ouvir-se-ão latinidades movidas a “chocalho” bem medido, ouvir-se-ão baladas feiticeiras com secção de cordas, flautas, metais, reverberações e órgãos de fantasia, funk-rock de uns Funkadelic transportados para a Baía, sonoplastia para novos Zés do Caixão (a famosa personagem do realizador brasileiro de cinema de terror, José Mojica Marins). Ouvir-se-á música com grão vintage, fervilhante, com tanto de crueza quanto de apurado trabalho de estúdio. Foi o trabalho de um homem, Alex Figueiras, que descobriu forma de não estar sozinho.

A voz que ouvimos no disco é de Joel Stones, brasileiro que mantinha em Nova Iorque a loja de discos Tropicália in Furs e que fora responsável pela compilação Brazilian Guitar Fuzz Bananas, editada em 2012 (Stones abandonou entretanto a banda). Figueira conheceu-o em Nova Iorque, convidou-o para passar música numa das suas festas em Amesterdão e, no dia seguinte, Joel e Alex estavam no Barracão. Tinham a companhia de James Porch, baixista dos The Grits, banda de Brighton que Alex editara na sua Music With Soul Records. Ali nasceu A bruxa, que seria completada quando Stuart Carter, guitarrista dos The Grits, juntou a sua guitarra à mistura. Meses depois, em três sessões totalizando nove dias, nascia o álbum de estreia (com a paulista Kika Carvalho a juntar-se à banda como vocalista).

Apresentava-se o novo Tropicalismo dos Fumaça Preta, criação de um luso-venezuelano obsessivo – “Não consigo controlar, quando descubro e gosto [de uma música], escavo até não poder mais." Ouvimos Fumaça Preta, juntamos a nossa voz à catarse berrada de Vou-me libertar e não temos dúvidas. A obsessão fica-lhe muito bem. É mesmo verdade: Fumaça Preta liberta. 

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