O homem que recusava ser a sua própria revolução

Baal não é só uma peça de teatro, é um manifesto que haveria de servir para ler o século XX. Brecht escreveu mais do que uma personagem, inventou um homem novo num mundo que iria mudar.

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Em Portugal João Lourenço propunha, em 1980, um Baal interpretado por Mário Viegas.

Com Brecht aprendeu-se, como dizia Roland Barthes, “que a arte pode e deve intervir na História”. Com Brecht percebeu-se que “o teatro deve resolutamente ajudar a História desvendando-lhe os processos; que as técnicas do palco também são comprometidas”.

E Baal, peça primeira, ars poetica que cuspia na cara do presente, tinha “qualquer coisa de inaugural e perigoso”, explicava Sylvain Creuzevault que a encenou em 2006, antes de nos mostrar como a falência da revolução francesa, antes de Brecht, e o capitalismo, que Brecht rejeitou, eram uma e a mesma coisa.

Em 1918, ano do fim da guerra, princípio do século XX, quando Brecht a começava a escrever, disse isto numa carta a um amigo: “Proclamo a minha independência e cuspo e estou farto do que é novo e começo a trabalhar com o que é muito antigo, com o que foi experimentado mil vezes, e faço o que quero, mesmo que aquilo que quero seja mau. E eu sou um materialista e um malandro e um proletário e um anarquista conservador e não escrevo para a imprensa, mas para mim, para ti e para os japoneses”.

Brecht aprendeu, de Rimbaud a Marx, de François Villon a Lenine,  a ler na “história recente da Alemanha a tragédia do comunismo e nesta a do seu crescimento individual”, escreveu Jorge Silva Melo, que encenou a peça em 2003, no prefácio à edição das obras de Brecht. O século XX começava com cheiro a morte por entre as ruínas da revolução industrial e do progresso. Brecht começava oferecendo-se como corpo em sacrifício para esse novo homem que deveria surgir. O seu nome: Baal, corpo sem espírito, líder resoluto, bêbado ladrão e utópico sedutor. Homem que apostava com o corpo o que as palavras pediam. Homem que mataria o seu melhor amigo, o outro corpo que também era seu. Disse Brecht: “Não pensem ver nele uma natureza especialmente trágica nem especialmente cómica. Baal tem a seriedade de todos os animais”.

Qual o preço da liberdade? Brecht “aprendeu a não respeitar as leis e a gostar dos canalhas e das vielas, a proclamar, vaidoso, a poesia das tabernas contra o bruxulear dolente das academias, a exigir da vida a aventura ilimitada”, escreveu Silva Melo e Baal é esse texto de uma vida no momento imediatamente anterior em que lhe pedem para deixar de viver e se recusa a seguir o que lhe impõem como norma.

“A peça é como um jogo de dados”, escrevia Creuzevault no programa do Théâtre de l’Ódeon, em Paris. “Baal é alguém que ensaia constantemente, e com grande violência, a diferença perante as normas sociais. O seu poder de sedução passa pela brutalidade, pelo corpo”. Em Portugal João Lourenço propunha, em 1980, “uma leitura pessoal, marcada por uma grande coerência ideológica e cénica” (Carlos Porto, Teatro em Portugal 1974-1984), interpretada por Mário Viegas. Em 2003, Miguel Borges, outro rosto, e outro corpo, de um teatro de reacção, respondia às indicações de Silva Melo. Um e outro actores a mostrarem que Baal foi sempre tanto um manifesto de luta como um desejo de fuga.

Como diria Heiner Müller, que digiriu o Berliner Ensemble que Brecht haveria de criar, “no teatro, cada cena deve ser um escândalo” e Brecht, através de Baal, olhava para os que o olhavam e dizia-lhes que não. “Convidem as pessoas para o circo. E aí elas podem estar em mangas de camisa e fazer apostas. E assim não precisam de ficar à espera de abalos espirituais e concordar com os jornais, mas ficam a ver como as coisas correm bem ou mal a um homem, como ele é oprimido ou festeja os seus triunfos, e então vão lembrar-se das lutas da manhã”, escreveu ele em Baal come, Baal dança, Baal transfigura-se!, que deveria ter sido o nome da peça.

Brecht, que “chegou às cidades em ‘tempo de desordem’, viu que ‘os homens se revoltavam’ e com eles se revoltou”, escreve Jorge Silva Melo. Das memórias de leitura de François Villon, à sombra de Rimbaud (mesmo que seja Verlaine a referência no primeiro embate entre Baal e a sociedade), Baal consome o mundo, como Brecht o queria engolir como se o século XX pudesse começar outra vez, depois da Guerra, antes de outra Guerra. Baal é Brecht como Brecht era a carne e o sangue de uma geração a perguntar o que se seguia e como se viverá até lá.

É por isso que os rostos de Baal, são rostos geracionais, porque é a única forma de materializar o que Brecht disse da sua peça quatro vezes alterada. “Tem a actualidade da época em que se apresenta”. Podemos percebê-lo em Fassbinder – que, como Baal, “se tinha como inimigo” (Centre Pompidou, 2005) – como poderíamos encontrar noutros corpos lançados à luta, como Nijinsky, Pasolini, Genet, Morrison, Brando ou Basquiat, rostos de uma utopia que recusava ser, ao mesmo tempo, o corpo da revolta. O húngaro Arpad Schilling, em 1999, mostrou como um corpo podia também ser o rosto da Europa, numa encenação que esventrava o texto como se as palavras de Brecht fossem as ruínas do Império Soviético após a queda do Muro de Berlim.

Quando em 2011 Simon Stone encenou em Sidney a peça era Kurt Cobain o rosto dessa revolução porvir. O mesmo Cobain que já havia adaptado The man who sold the world, de Bowie. O mesmo Bowie cujo Major Tom haveria de ser cantado, como uma canção de despedida para Clotilde Hesme que, em 2010, fora o rosto e o corpo de Baal (encenação François Orsoni), reforçando a androginia evidente mas, sobretudo, questionando se a liberdade do corpo perante a utopia do discurso podia ter rosto de mulher.

“Como escapar aos códigos de representação de um bandido, tal como o fantasiamos?”, perguntava Creuzevault, falando de uma relação entre Brecht/Baal e Buchner/Danton, e chamando à memória uma encenação “radical e extrema” que Christoph Marthaler assinou em 2003 de A Morte de Danton. “É como se através da sua dimensão extrema, ou por causa dela, o espectador, mesmo à distância, visse o seu ponto de vista alterado”.

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