A vida e a morte de Fassbinder já estavam aqui

Rainer Werner Fassbinder como Baal, de Brecht, como rock star, na verdade - mais de uma década antes de Bowie se ter interessado pela personagem. Filme pouco visto, rodado por Volker Schlöndorff para a televisão em 1969, e logo interditado pelos herdeiros do dramaturgo, é um diamante em bruto, todo ele sensualidade em expansão. É a energia do Novo Cinema Alemão a explodir. É o mito Fassbinder em construção. Hoje, 19h45, Cinema Ideal, um dos títulos de abertura do DocLisboa

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Fassbinder na sequência de abertura de Baal. A viúva de Brech viu o filme e achou a interpretação “horrorosa” (“não basta usar um blusão de cabedal e pendurar um cigarro ao canto da boca para ser Brecht...!”)
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O filme pertence por inteiro ao teatro íntimo e sadomasoquista de Fassbinder, já que por aqui andavam os homens e mulheres com quem trabalharia, que manipularia e que amaria — Dietrich Lohmann, Peer Raben, Harry Baer, Irm Hermann ou Hanna Schygulla, que aqui, como na vida, permaneceria sempre protegida das humilhações

No dia 21 de Abril de 1970, Helene Weigel, viúva de Bertold Brecht, via, do lado oriental do Muro de Berlim, o Baal que Volker Schlondorff adaptara da peça do marido e que a televisão da ex-RFA transmitia nessa noite.

Helene Weigel via a entrada em cena de Rainer Werner Fassbinder, qual rock star de blusão e cigarro na boca mais de uma década antes de David Bowie, que também foi um berlinense, se ter interessado pela personagem de animal associal e poeta transbordante da floresta.
Helene achou um horror. Por decisão sua, e depois dos herdeiros de Brecht, esse Baal permaneceria praticamente invisível durante quatro décadas.
Helene Weigel não podia ter visto o que Volker Schlöndorff talvez tenha intuído quando num dia de Primavera entrou num teatro de Munique onde Fassbinder e a sua troupe do Antitheater faziam Preparadise Now. Como Volker escreveu na sua autobiografia, faziam cinema, mas em cima do palco, e como mais ninguém no teatro alemão. Pensou nessa troupe para fazer deliberadamente “teatro filmado” na sua adaptação à televisão de Baal. (Nesse mesmo dia Rainer juntou Volker aos elementos da sua equipa para lhes mostrar a sua estreia na realização, O Amor é mais Frio do que a Morte.)
Volker nunca vira “gente assim” — ao mesmo tempo artistas, boémios, pequeno-burgueses, criminosos e proletários. Tê-los-ia Fassbinder inventado? Ao ver Baal, podemo-nos perguntar: terá Schlondorff contribuído para fixar o “mito” Fassbinder, dando-lhe ideias para essa sua ideia de uma vida como um filme?
Este Baal pouco visto, que é hoje exibido no Cinema Ideal, em Lisboa, às 19h45, um dos títulos do dia de abertura do DocLisboa (repete dia 23, às 19h30, na Culturgest), exerce um sortilégio tremendo: como diamante em bruto que se estilhaçaria nas futuras personagens à beira da explosão (sexual) do Novo Cinema Alemão; como, mesmo sendo um filme de Schlöndorff, peça que pertence por inteiro ao teatro íntimo e sadomasoquista de Fassbinder, que aqui começava a expandir-se, já que por aqui andavam os homens e mulheres com quem trabalharia, que manipularia e que amaria — Dietrich Lohmann, Peer Raben, Harry Baer, Irm Hermann, Waldemar Brem ou Hanna Schygulla, que aqui, como na vida, permaneceria sempre distante, protegida das humilhações.

Depois de ver Baal (1969), regressei ao Jovem Törless (1966). Uma das coisas mais veementes nesses dois filmes, mesmo sabendo-se do seu amor pela literatura, que a sua obra viria a espelhar, é esse movimento, nos primeiros anos da carreira de cineasta, em direcção aos “clássicos”, a monumentos: Musil, Brecht (no meio houve Kleist). São filmes adaptados de obras de autores enquanto jovens artistas. Não é uma coincidência, pois não? O facto de terem sido livros escritos numa fase inicial de aventura literária deu-lhes uma energia da “primeira vez” que o tocou.
Sempre fui ecléctico na escolha dos livros que decidi adaptar. Nunca foi por se tratarem de obras-primas, mas por encontrar uma certa afinidade entre eles e um determinado período da minha vida. Procurei neles ajuda para me entender. E é verdade, tem razão, que fui para textos “jovens”, problemáticos, não acabados, mesmo se não tenho a certeza de que tivesse essa consciência na altura.
Em relação ao Jovem Törless e a Baal, sim, estava consciente. De outra maneira não me atreveria a tocar-lhes. Pensei: se eles puderam fazê-lo com a idade que eu tenho agora, porque não posso eu fazê-lo?

O facto de ter vivido e trabalhado em França antes, com Jean-Pierre Melville, Alain Resnais e Louis Malle, por exemplo... Pegar nesses monumentos era passo necessário para poder dizer “estou presente” e estabelecer uma ligação com a sua própria cultura?
Sim, principalmente porque já não estava familiarizado com a vida alemã, com os problemas contemporâneos, nem mesmo com a mentalidade da juventude. Por isso era mais fácil utilizar o passado e utilizar escritores como intermediários para perceber o que era a cultura alemã.

Esse foi o movimento do chamado Jovem Cinema Alemão, não foi? Estabelecer laços, afirmar uma pertença, continuar um passado que fora interrompido pelo nazismo. E, sobretudo, acordar uma memória no presente que era a da Alemanha que nascera do pós-guerra.
Eu tinha visto todo o cinema mudo e sonoro alemão antes de 1933 na Cinemateca de Paris, conheci Fritz Lang, Lotte Eisner, [Joseph von] Sternberg e outros, e estava ansioso para preencher o vazio, para continuar a História do cinema alemão onde aqueles emigrantes a tinham deixado. Foi por isso que fiz tudo o que pude para os conhecer e, mais tarde, por me tornar amigo de alguém como Billy Wilder.

Mas para alguém que, em 1975, faria A Honra Perdida de Katharina Blum, filme a latejar de “agora”, esse movimento em direcção ao passado para falar de um presente era estratégia defensiva?
Não, apenas senti que não sabia o suficiente sobre o quotidiano alemão quando cheguei ao meu país ao fim de quase dez anos de ausência. No tempo de A Honra Perdida de Katharina Blum eu estava completamente integrado, e muito comprometido social e politicamente.

Que Alemanha encontrou?
Eram os anos Adenauer, os “anos de chumbo”, como lhe chamávamos citando Hölderlin. Ninguém falava do passado, do Holocausto, dos nazis, e no entanto todos tinham feito parte disso. Qualquer conflito era varrido para debaixo da alcatifa. Harmonia e segurança era o que as pessoas queriam e o que os jovens desprezavam. Baal foi a resposta.
Havia versões muito diferentes. A primeira era a melhor, uma versão muito anárquica. Mais tarde, na RDA, Brecht tentou reescrevê-la para que pudesse colar com o socialismo: Baal, ser associal, sim, mas num mundo associal, o poeta vítima das leis do mercado. Era didáctica e aborrecida, em comparação com a poesia selvagem da primeira versão...

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Volker Sclondorff FRED DUFOUR/AFP

Em Baal e no Jovem Törless, a sociedade oprime a sexualidade, a sensualidade. As personagens desses dois filmes são corpos que precisam de explodir. Mas reagem de forma diferente ao que os contém. Por isso, os filmes são diferentes: Baal parece uma crítica, uma sabotagem estética, formal — como se sabotasse O Jovem Törless. Há em Baal uma hipersensibilidade em relação às palavras e à música: é isso que faz decidir sobre a montagem e os movimentos de câmara. Foi um choque sensual com Brecht?
Sim, e de várias maneiras. Com O Jovem Törless eu estava a tentar provar que aprendera o meu métier, que sabia fazer um filme, quase como se estivesse na era do mudo. Uma forma “clássica” de filmar, apropriada para um romance escrito de forma clássica. Quatro anos e três filmes depois, 1968 tinha acontecido. Odiei a forma como fiz Michael Kohlhaas (1969), quis começar de novo, esteticamente e, sim, sexualmente. Na verdade, arrependo-me de não ter ido até ao fim na figuração da homossexualidade nos adolescentes de O Jovem Törless. As personagens de Basini e Törless deviam ter feito amor. E o encontro com Margarethe von Trotta foi decisivo para a minha libertação sexual. Foi a primeira vez que vivi com uma actriz, fugimos. Ela deixou o filho. Amour fou. Margarethe foi uma revelação para mim. Max Frisch [dramaturgo, romancista] queixou-se uma vez do número de páginas que era necessário escrever para exprimir o que se pode contar num ecrã através de um grande plano de dez segundos. Foi o que fiz com Margarethe; não poderia descrevê-la melhor que através dos grandes planos dela em Baal, Fogo de Palha (1972) e Golpe de Misericórdia (1976). Ela tinha uma mini-saia de veludo verde quando a encontrei pela primeira vez e lhe falei da peça de Brecht, Baal, e de Rainer Werner Fassbinder.

O que aconteceu quando Baal foi exibido na TV alemã? Como explica as reacções negativas depois com os herdeiros de Brecht que tornaram este filme um segredo?
Baal foi feito para a televisão da Alemanha Ocidental, foi exibido apenas uma vez, em 21 de Abril de 1970, e apesar de haver contratos de distribuição nunca mais pôde ser mostrado, porque a viúva de Brecht, Helene Weigel, fez uso dos seus direitos. Como mais tarde me contou o dramaturgo Tomas Brasch, Helene Weigel, que viu o filme nessa noite do outro lado do Muro de Berlim, achou a interpretação de Fassbinder “horrorosa” (“não basta usar um blusão de cabedal e pendurar um cigarro ao canto da boca para ser Brecht...!”). Sem a sua autorização não conseguimos fazer nada com o filme durante 40 anos. O que os herdeiros de Brecht nunca perceberam foi que já havia Fassbinder no Baal de Brecht, e que havia o espírito de 68 no jovem Brecht.

Os mais famosos, e comercialmente mais bem sucedidos, filmes do Novo Cinema Alemão [como O Tambor, de Schlöndorff, em 1979, que receberia a Palma de Ouro de Cannes e o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro] ainda estavam para sair. Mas este Baal faz figura de diamante em bruto. Como uma impressão digital do que haveria de aparecer. O (anti-)herói, corpo excessivo e angustiado, seria um modelo de futuras personagens masculinas e femininas do cinema alemão. Estava consciente dessa energia à beira de explodir?
Foi a primeira razão por que peguei na peça. Escrita logo a seguir à Primeira Guerra Mundial por um jovem irado, reflectia a mesma urgência selvagem que eu sentia. Anti-burguesa, mas ao mesmo tempo politicamente incorrecta para a ideologia de esquerda. “Que se foda a mensagem” era a nossa palavra de ordem.  

E há Fassbinder. É incrível como “o mito” estava já aqui em trabalhos. Viu-o em palco, numa das suas peças do Antitheater, em Munique. Ele aparece como uma estrela rock logo na primeira sequência — David Bowie só foi Baal décadas depois. A persona está à vista. Todos os futuros Franz Walsh dos filmes de Fassbinder, o elemento sacrificial... as interacções da cena da “festa” podiam pertencer a O Direito do Mais Forte à Liberdade, por exemplo. O que aconteceu: usou Fassbinder como Baal ou ele é que usou Baal para construir Fassbinder, perseguindo essa ideia de que a sua vida devia ser um filme?
Uma bela pergunta. Retrospectivamente, o casting foi profético: toda a sua vida estava contida nesta personagem. E estou convicto de que o papel teve enorme influência no seu estilo, na sua vida — e até na sua morte. Impossível de dizer quem usou quem. De qualquer forma a palavra certa não seria “usar”. Inspirámo-nos pelas mesmas coisas e durante algum tempo fomos muito próximos.  


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