Propaganda

No actual ambiente global, a propaganda é o meio de surfar o mundo em direcção a um futuro para o qual só existe uma via: consumir (ou desaparecer)

Vivemos em estado de propaganda; não de um modo antigo, submetidos ao terror uma ideologia totalitária controlada por um governo e produzida por um técnico propagandista personificado na figura do nazi Goebbels, mas de um modo bem mais sofisticado, nem por isso menos desumano, mais perverso, mais difícil de descodificar, em que as mensagens parecem difusas e produzidas por múltiplos emissores: governos, agências de governança da União Europeia, banca, empresas de media, multinacionais globais, etc. Não tendo todas as mensagens de propaganda, no imediato, os mesmos propósitos, elas têm em comum a preocupação de serem completamente eficazes. E esta eficácia traduz-se em transformar os auditores a quem se dirigem, à escala de um país como à escala universal, em convertidos e replicadores da propaganda emitida.

A obra de Jacques Ellul, Propagandas — uma análise estrutural, é um bom documento para entender a complexidade da propaganda na actualidade, a sua história e as suas componentes. E nele há três aspectos a destacar: o que desfaz a ideia de que a propaganda consiste necessariamente na difusão de imposturas grosseiras, a constatação de que o cidadão médio não tem memória e não tem tempo nem gosto para se entregar à investigação e, finalmente, a ideia de que a propaganda hoje tem uma dimensão técnica proporcional em escala e operacionalidade à omnipresença da técnica no mundo actual. A este propósito, o marketing, tido como uma técnica de comunicação e como uma expressão funcional das Ciências da Comunicação, aparece como a forma mais limpa, mais desideologizada, da propaganda, até porque, tendo origem numa disciplina científica, vem acompanhada da “boa” ideia de progresso comum a toda a cientificidade. Não fora o facto de o progresso radicar na tecnologia, que não é necessariamente conforme à Ciência, podendo corresponder muitas vezes a uma mera necessidade de investimento de capital. Configurando o marketing um conjunto de técnicas de comunicação eficazes, elas estão sujeitas a um conjunto de variáveis interesseiras de quem o autoriza. A este propósito, N. Lhumann e Talcott Parsons introduzem a teoria dos meios de intercâmbio na produção de comunicação que se pode aplicar à análise da propaganda: o dinheiro, o poder, a influência, e os compromissos morais, a ideia de verdade no caso da ciência e de amor no caso das relações íntimas. E assim temos a fórmula mais moderna de propaganda destinada a vários auditores.

Mas será que toda a propaganda é má? A propaganda cuja mensagem é o apelo à democracia é tão perigosa quanto a propaganda xenófoba de uma Frente Nacional? É aqui que surgem os paradoxos da propaganda democrática e da democracia. Numa democracia, o que é elementar e da natureza desta é que um regime que se define como de liberdade de expressão tem de permitir toda a propaganda, inclusivamente a que é anti-democrática. Já a propaganda da democracia encontra várias limitações conforme os valores inerentes à própria democracia, o que a fragiliza se abdicar da propaganda, ou a coloca numa situação semelhante a outras propagandas de massificação das mensagens e de desvalorização do sujeito histórico. Sendo a natureza da propaganda hoje muito menos ideológica e de transmissão de valores e muito imperativa, conduzindo ao agir — Faça! Compre! Execute! —, ela é incompatível com a democracia, cuja propaganda mais ideológica perde eficácia enquanto a imperativa ganha eficácia, tanto mais que quem a pode fazer não é o Estado democrático mas as suas agências, os governos, as agências de comunicação com as as astúcias da propaganda tout court, e mesmo assim perdendo para as grandes organizações com capacidade financeira de propagandear até aos limites do totalitarismo, como é o caso dos partidos de grandes recursos financeiros ou as cadeias de media.

Não bastaria pois que a propaganda fosse boa para que fosse democrática, a não ser que esta produzisse a reflexão antes de provocar a acção, mas aqui já estaríamos no espaço da argumentação, do debate, da intersubjectividade, em tudo contrário à propaganda e à sua eficácia. Aliás são estes últimos os únicos espaços de resistência à propaganda e aos interesses — muito mais que aos valores — que a produzem.

Alguns, por inocência ou por interesses, advogarão que a figura do artista poderia ser o lugar de desconstrução da propaganda. A este propósito, a história do artista como figura alternativa não é a mais exemplar — como aliás a do escritor. O caso dos artistas das vanguardas modernistas que flirtaram com a violência no princípio do século, na expressão de Stefan Zweig, ou a simpatia incial pelo regime nazi de Munch, Barlach, Nolde, Mies van der Rohe, segundo a obra La responsabilité de l’artiste, de Jean Clair, destituem o artista, genericamente falando, deste estatuto de desconstrutor da propaganda do regime totalitário. Com a ressalva de alguns — entre outros cidadãos — que o fazem como prolongamento do seu pensar, e de que há notáveis exemplos como Jimmie Durham, Ai Weiwei ou Bouchra Khalili. E estas particularidades também são válidas para a imprensa ou para a rádio. Não há imprensa ou rádio anti-propaganda: há sujeitos históricos que ali trabalham que o podem ser.

Dir-se-á que houve períodos da História em que a propaganda foi mais mortífera do que é na actualidade. Não terá sido a propaganda, mas sim os instrumentos do Estado dos regimes a que estava então associada, porque ela é hoje mais centrada em monopólios internacionais, agindo à escala global — e, no império da tecnologia global em que actua, a propaganda é o meio de surfar o mundo produzindo em contínuo a amnésia do passado com os seus erros, as suas falhas, as suas glórias, em direcção a um futuro para o qual só existe uma ordem: consumir ou desaparecer. 

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