Pela estrada fora da azulejaria brasileira com Alexandre Mancini

Em Lisboa para falar sobre a azulejaria brasileira, Alexandre Mancini não tem a influência do branco e azul português, mas correspondia-se com Eduardo Nery e é discípulo formal de Athos Bulcão. Aos 40 anos, é um dos principais protagonistas do sector no Brasil.

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Alexandre Mancini, fotografado no Museu do Azulejo Enric Vives-Rubio
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Alexandre Mancini, fotografado no Museu do Azulejo Enric Vives-Rubio
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Lâmina, em Belo Horizonte Elcio Paraiso/DR
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Lâmina, em Belo Horizonte dr
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Detalhe de Victória, de 2007, para um edifício comercial em Belo Horizonte dr
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Caminhos em Cores, de 2011, para um edifício comercial em Belo Horizonte Elcio Paraiso/DR

Há uma estrada que faz a história da azulejaria brasileira, do Rio até Brasília, e uma costa que faz a história dos azulejos portugueses no Brasil – é assim que começa o percurso de Alexandre Mancini, um dos principais artistas da azulejaria brasileira contemporânea, que dá na quinta-feira uma conferência em Lisboa. “Eu nunca vi azulejo português na minha vida”, explica sobre um caminho que o fez sim um dos discípulos formais do mestre Athos Bulcão, que revestiu as paredes da Brasília de Oscar Niemeyer. Sem a influência histórica do colonizador europeu, “sou novo”.

Em Lisboa para falar sobre a azulejaria brasileira, Mancini começou a estudar a história dos desenhos que via na sua Belo Horizonte natal. “Tem a Pampulha” – o complexo moderno desenhado por Oscar Niemeyer no início dos anos 1940 e que inclui trabalhos de Cândido Portinari com Athos Bulcão como assistente e de Paulo Werneck – e que é “riquíssima de arquitectura moderna brasileira”. 

E conta como às 18h30 vai explicar na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa: ao longo da história da presença portuguesa no Brasil, “o litoral foi todo coberto com azulejos portugueses, mas estávamos muito no interior e os azulejos não chegavam a Minas Gerais”, o estado do barroco em que tudo é ouro e floreado e de que Belo Horizonte é capital. “Em lombo de burro, não chegavam. Quebravam.” Ali, a azulejaria portuguesa existe enquanto raridade e por isso Alexandre Mancini, de 40 anos, começa a trabalhar assim. Fruto da não-influência tradicional. Espectador de Athos Bulcão, de Portinari ou Werneck, este autodidacta pode assim dizer que nunca viu o tradicional azulejo português que está na Bahia, no Recife, ou no Rio. Conheceu-o depois.

O caminho dele é então outro. É a estrada, “a BR040, que começa no Rio e termina em Brasília, e passa por Belo Horizonte. Essa é a trajectória da azulejaria brasileira”. Vem falar dela, e do seu trabalho, da arte do azulejo contemporâneo brasileiro que despontou depois do moderno arquitectónico e de como um dos seus murais foi parar à Praça da Pampulha, junto ao complexo de Niemeyer.

Hoje é representado pela Fundação Athos Bulcão, legado do artista plástico que marcou o rosto da capital do Brasil – são dele os azulejos da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, do Mercado das Flores, do Aeroporto Kubstichek, da Escola Francesa, tudo na cidade para a qual foi morar logo em 1958. Vê-se como a sua “continuidade, mas sem ser retro”, mas dono da sua identidade artística. Deixou a sua empresa de decoração de loiça “por puro desejo” em 2007 pela azulejaria artística e logo se associou a projectos de arquitectura na zona de Belo Horizonte.  

A ligação a Portugal entretanto estreitou-se. Enquanto conversa com o PÚBLICO no Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa, que já conhecia e que teve uma exposição dedicada a Bulcão em 2013, vem à conversa não só a oportunidade emotiva de, em 2007, conhecer Athos Bulcão antes da sua morte - “Nem conversámos sobre arte nem azulejo, foi só para agradecer” a inspiração - mas a transformação do “amigo virtual” Eduardo Nery numa “tarde inteira à conversa” em Lisboa. “Eduardo Nery (1938-2013) e Athos Bulcão criaram soluções muito semelhantes sem se conhecerem. Athos foi num caminho de talvez mais liberdade, Eduardo talvez de mais matemática, mas muito próximos. Como se dialogassem.”

Azulejo é simétrico
Alexandre Mancini, aluno sofrido e sofrível de matemática na vida escolar, é apaixonado por padrões e pela simetria - “e azulejo é absolutamente simétrico”, sorri, gratificado. Outra obsessão, um “problema seríssimo”, ri-se, é o futebol do Atlético Mineiro, clube que até o fez introduzir uma raridade – elementos figurativos – num painel para a instituição. Além de Lâmina (2008), na Praça da Pampulha, tem pa# na Escola Superior Dom Helder Câmara (2014) e muitos painéis únicos e assinados em edifícios comerciais, espaços de restauração, mas o grosso do seu trabalho está em residências particulares. Painéis para os projectos de arquitectura com os quais tem como objectivo trabalhar sempre que possível. Nunca na perspectiva do azulejo como ornamento, embora valorize o seu lado decorativo, mas como elemento de movimento, como animação do programa da arquitectura. Hoje lamenta que a história não se repita. “Na história do Brasil tivemos Brasília, a Pampulha, e essa chance a gente não tem mais, de construir obra pública. Dificilmente vai haver um outro Niemeyer, é quase impossível.” 

Os seus painéis existem primeiro por escrito. “Faço criações descritivas: ‘Trabalhar as linhas diagonais em vermelho, amarelo e laranja com fundo preto’”, exemplifica. Depois, quando se trata de desenhar, “o módulo do desenho principal é criado a partir de eixos, mas há toda uma relação matemática do posicionamento de cada peça, de proporção, de tamanho”. E, tal como Athos Bulcão, depois é a liberdade. Ou, tecnicamente, a composição modular aleatória que aquele praticava, um tipo de modulação que identifica também em Nery ou no americano Sol LeWitt. “Mando as instruções escritas e um A1 com a composição como eu criei, mas [o assentador] pode virar o papel quantas vezes quiser, só não pode repetir muito”. Cabe ao azulejista ou assentador definir o aspecto final da obra. Não é um risco? “Sim, mas nunca deu errado.” E, completa a designer de jóias Raquel Távora, a sua mulher que está connosco à conversa em Lisboa, “matematicamente dá certo”.

A busca da simetria não significa, como se vê no seu trabalho, olho por olho, igual por igual. O seu “olho plano”, para o qual “tudo é bidimensional, tudo é uma superfície”, encontra simetria na aparente desorganização. Corrupção, diz ele, porque “apesar de ser tudo muito matemático, conto muito com o acaso. O acaso sempre acontece”. Até à sua filha nascer, há quatro anos, quase não usava a cor. Depois, entrou o verde, o laranja, a mancha colorida. Ganha a sua liberdade. Musica desenhos - fez “uma sinfonia modular” a partir da sua peça Tempestade de Triângulos (2013). “A ideia criativa sempre foi muito urgente para mim”.

Eu sou novo
O tema da sua conferência é A Azulejaria Brasileira e quando passamos da história às impressões digitais, sobre essa especificidade, Mancini volta a Nery enquanto pen pal – como o conhecia antes de vir a Lisboa apertar-lhe a mão. “Trocávamos longos emails e sempre dessa forma: o brasileiro não conhece a azulejaria portuguesa moderna e português tem uma breve noção que existe uma azulejaria brasileira.”

Volta às origens, ao ser novo, à arquitectura. “Eu sou Mancini, italiano, mas sou descendente de portugueses, espanhol e negro. Eu sou novo. Essa mistura é nova, a minha cidade é nova, a azulejaria brasileira é nova - para esse olhar português, para essa história”. A ligação à arquitectura tropical, ao sol que está em todo o lado, fervente, em Brasília, dá ao azulejo, simplifica, a “função de refrescar, de iluminar”, aliada à “tradição de arte concreta", não-figurativa e eminentemente geométrica, da arte moderna. "O Brasil desde sempre luta para ter uma identidade forte, ele não sabe se é português, se é índio, se é negro. É uma terra de muita liberdade, mas de muita tradição ao mesmo tempo. É conservador mas livre. Não sabemos de facto o que somos até hoje e acho que essa construção [de identidade] parte muito da arte, da arquitectura, da música, da literatura - a música conseguiu fazer isso muito bem, a arquitectura avançou muito nesse sentido. E a arte conseguiu”, postula. “A azulejaria sintetiza tão bem essa relação com Portugal”, recupera. Tudo confortavelmente simétrico. Sorri. “Azulejos? Quatro cantos de 90 graus.” 

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