Dias da democracia

Sem os dois feriados que este governo decidiu extinguir — 5 de Outubro e 1.º de Dezembro — quase certamente não haveria governo nem país independente para governar.

É apenas mais um exemplo particularmente simbólico da colossal negligência cívica da atual maioria governativa, mas isso já interessa pouco. Falta um ano de mandato a este governo, e o importante hoje é saber como o substituir, e para fazer o quê. Como simbólica foi a abolição destes feriados, simbólica deve ser a sua reinstituição. Não substitui, nem sequer inicia, o grande trabalho de reconstrução do país que haverá a fazer, mas constitui um bom exemplo de como encerrar este capítulo não pode querer dizer simplesmente voltar atrás.

Individualmente, um feriado tem apenas um significado: é um dia para cada um fazer o que quiser. Institucionalmente, o significado é muito diferente: não serve simplesmente reintroduzir o dia da República e o dia da Restauração com intuitos meramente museológicos, para comemorações sempre iguais e cada ano mais desatualizadas. Ironicamente, a abolição de ambos os feriados acrescentou-lhes um significado político. E é de significado político, com a mais clara e profunda das intenções, que a reintrodução dos feriados necessitará.

O que fazer com estes dias? Para responder socorro-me da ideia de criar um “dia da deliberação” democrática, lançada pelos cientistas políticos James Fishkin e Bruce Ackerman como proposta de um novo feriado para a discussão dos grande temas de uma comunidade política. Nessa proposta, os cidadãos de um país (no caso do livro, os EUA, mas para o caso tanto faz) participariam como desejassem — e apenas se o desejassem — em atividades de caráter cívico que envolveriam a identificação de problemas nacionais e a elaboração de propostas, que depois seriam endossadas ao parlamento e revisitadas no ano seguinte.

É algo assim que poderíamos fazer em Portugal com a reintrodução destes dois feriados de significado eminentemente cívico-político. Enfatizo que, nesta minha sugestão, a participação seria inteiramente voluntária — quem quiser o feriado para passear no campo, pode e deve fazê-lo — mas a participação nestes “dias da democracia” poderia ser preparada e enquadrada pelas escolas, associações e municípios. As bibliotecas municipais poderiam disponibilizar documentação sobre os temas em debate. Os professores poderiam organizar debates prévios nos dias seguintes. No próprio dia, votações, emendas e “parlamentos de jovens” poderiam animar as atividades — tendo como resultado a produção de uma reflexão mais profunda e construtiva do que aquela com que geralmente são tratados os temas polémicos neste país.

Sim, há um debate a fazer sobre corrupção, morosidade da justiça, reforma do sistema político, sustentabilidade da segurança social, ordenação do território e tantos outros temas — mas se não queremos que o nosso espaço público seja facilmente presa da demagogia e da anti-política, esse debate tem de ser informado e ponderado, participado e inclusivo.

Assim em vez de termos, como ontem, o Presidente alertando para os problemas dos partidos e estes recusando aceitar que tenham problemas, numa coreografia rebarbativa e vazia, daríamos uma oportunidade a que estes dias que comemoram a nossa autodeterminação nacional e de regime passassem a ser dias da democracia.

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