O trabalho e a vida do “Senhor Livro” vão ser festejados durante um mês

Ciclo Cultura a Norte, organizado pela Sociedade Portuguesa de Autores, arranca com homenagem ao antigo livreiro Fernando Fernandes

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Fernando Veludo/Nfactos

Fernando Fernandes entra devagar no escritório da sua casa, coberto de livros e quadros. Senta-se na sua cadeira especial, em que pode apoiar o pescoço, e fala durante mais de duas horas, deixando que os 80 anos transpareçam apenas em algum cansaço na voz. O homem que fundou as livrarias Divulgação e Leitura, que é “uma lenda viva”, conforme escreve a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e a quem esta apelida também de “Senhor Livro” vai ser neste sábado homenageado no ciclo Cultura a Norte, no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR). Ele, que cada vez sai menos de casa, diz que não vai estar presente. Talvez fique a ler, no sofá lá de casa.

Quem é do Porto e gosta de livros não precisa que lhe apresentem o antigo livreiro. Era à porta dele que se batia, à procura das obras proibidas pela censura, era a ele que se recorria na busca de um livro difícil de encontrar, quando a censura já se fora embora. Era também ao ficheiro manual da Leitura, com as entradas de todas as obras que por ali passavam organizadas por título e autor (e, por ali, passava praticamente tudo, porque Fernando Fernandes não recusava sequer uma primeira obra, de um total desconhecido) que recorriam, às vezes, investigadores. Em 2008, a saúde afastou o livreiro da sua livraria.

Fernando Fernandes não encontrou quem assumisse o cargo de gerente, que pretendia abandonar, mantendo a metade que possuía da sociedade da livraria, e acabou por se desligar totalmente da Leitura. Depois de ter encontrado dois interessados para comprar a sua parte, o sócio, o editor José Carvalho Branco, “nas vésperas do negócio” decidiu exercer o direito de preferência e tornou-se o único dono da Leitura, colocando as duas filhas como gerentes.

Há 16 anos, o livreiro que não tinha tempo para ler, tal era o conjunto de actividades em que se envolvia, viu-se numa situação em que nunca se imaginara. “Eu era chapa ganha, chapa batida. E nunca pensava que me iria reformar, nunca tratei de me defender. Mas comecei a sentir que já não tinha força suficiente”, diz.

O antigo campeão nacional de ténis em pares, que trabalhava até aos domingos de manhã, fora batido por três operações às costas, iniciadas por um esforço mal colocado, na retirada de uma tábua do stand da Leitura na Feira do Livro do Porto, e agravadas pelo desporto que não abandonou até à terceira cirurgia. Deixar a Leitura, diz, não lhe custou tanto como dizer ao patrão da primeira livraria em que trabalhou, a Aviz, e que o tratava “como um filho”, que se ia despedir. Mas as informações que amigos e conhecidos lhe vão levando em visitas ou telefonemas, sobre as transformações sofridas pela Leitura deixam-no, hoje, “com um grande desgosto”. “Depois de sair, não voltei lá”, diz. Mas não deixou de comprar ali livros.

Ali e noutros lados. Além das obras que continuam a mandar-lhe para casa, Fernando Fernandes mantém-se a par das novidades e compra livros que, finalmente, tem tempo para ler. A reforma permitiu-lhe percorrer, pela primeira vez, todas as páginas de Guerra e Paz, de Tolstoi, e os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Os livros, entranhados em cada pedaço livre da sua casa, estão também, definitiva e irremediavelmente, entranhados na sua vida.

Ele continua a escrever cartas e reflexões numa velha máquina de escrever, que possui há mais de 50 anos, e diz que não sabe trabalhar com computadores, mas isso não o impede de continuar a ser uma ajuda preciosa na descoberta de “livros difíceis”. Depois da saída da Leitura, há 16 anos, os amigos e conhecidos deram-lhe algum tempo de descanso, mas não para sempre.

Fernando Fernandes diz que “de vez em quando”, alguém lhe pede para encontrar uma ou várias obras. E ele, munido da ajuda da mulher da filha, que vasculham a internet, e recorrendo aos seus inúmeros contactos, lança-se ao trabalho. “Tenho conseguido encontrar todos os livros que me pedem, mas ofereço-os, vender não vendo. A partir do momento em que saí da livraria, deixei de ser livreiro, já não ia vender livros”, diz.

Enquanto Fernando Fernandes fala, chega um carregador para transportar para o MNSR documentos e bens que o velho livreiro seleccionou para a exposição que é inaugurada esta tarde, no âmbito do ciclo Cultura a Norte, organizado pela SPA, e programado por Jorge Castro Guedes. Saem cartas e fotografias, e também um pesado busto em bronze de Fernando Fernandes, criado pelo escultor Hélder de Carvalho.

A homenagem, sob o título “Fernando Fernandes: A Divulgação da Leitura” vai prolongar-se durante todo o mês de Outubro, com colóquios e debates, em diferentes espaços da cidade. Arranca pelas 15h30 com a inauguração da exposição, uma conferência sobre a obra do antigo livreiro, com vários participantes, e apontamentos musicais. Castro Guedes diz que não teve dúvidas em dedicar a Fernando Fernandes a primeira parte da Cultura a Norte – em Novembro, será a vez do Cineclube do Porto e, em Dezembro, o escritor Óscar Lopes. “Ele é um eixo irradiador de cultura, todos se foram alimentar à sua livraria”, diz.

Fernando Fernandes, que não foi à Feira do Livro mas saúda a iniciativa da câmara de a organizar - “espero é que o [vereador] Paulo Cunha e Silva se apoie em bons livreiros, que ainda os há, para as próximas edições”, defende -, não vai ao museu este sábado. Ele, descrito por amigos e conhecidos, como um cavalheiro, diz que se cansa muito e que não poderá comparecer a um evento em que terá, necessariamente, “que se levantar, quando chega uma senhora”. Castro Guedes dá uma gargalhada ao ouvir esta justificação e garante que não desiste. “Respeito a sua decisão de recolhimento, mas até ao último minuto vou tentar convencê-lo a comparecer”, afirma. 

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