“É preciso estofo para não se ficar vaidosa”

O festival Escritaria, em Penafiel, homenageou este ano a romancista Lídia Jorge. Durante alguns dias, a cidade encheu-se de frases da autora, uma das quais ficará agora para sempre à entrada da biblioteca municipal.

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Uma das montras de Penafiel Nelson Garrido
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Obra de Lídia Jorge rodeada de lingerie numa das lojas de Penafiel Nelson Garrido
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A escritora Lídia Jorge Nelson Garrido
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Uma das frases da autora espalhadas pela cidade Nelson Garrido
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O poema que dedicou a Sophia Nelson Garrido
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Uma das frases da autora espalhadas pela cidade Nelson Garrido
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Criado em 2008 pelo então presidente da Câmara de Penafiel, Alberto Silva Santos, o Escritaria, que este ano homenageou a romancista Lídia Jorge, é um festival literário com uma característica peculiar: tudo gira em volta de um só autor ou autora. E este tudo inclui não apenas a programação propriamente dita, mas todo o centro histórico da cidade, que por estes dias se encheu de textos, frases e fotografias da escritora, impressos nos mais diversos suportes e espalhados por ruas, paredes e montras de lojas.

Se a isto somarmos simpáticos grupos de estudantes a tocar e a cantar para a autora, artistas plásticos a pintar ao vivo grandes painéis alusivos a um algum aspecto da sua obra, e dezenas de comerciantes a vir cumprimentá-la à porta das lojas, com essa mesma gentileza simultaneamente calorosa e tímida que se imagina na recepção a alguma rainha, a impressão de conjunto pode ser um bocadinho avassaladora. “É preciso estofo para não se ficar vaidosa”, confessava esta sexta-feira Lídia Jorge ao actual presidente da Câmara de Penafiel, Antonino de Sousa, antes de iniciar o trajecto entre os Paços do Concelho e a Biblioteca Municipal, onde iria ser descerrada uma frase sua, para ficar para sempre como testemunho desta sua passagem pela cidade. 

Essa caminhada ao longo da Avenida Sacadura Cabral, que a passo normal levaria talvez cinco ou dez minutos, demorou perto de duas horas, se contarmos com o interlúdio para um chá oferecido por uma loja de um centro comercial, que confeccionou também biscoitos com a forma das letras do nome de Lídia Jorge. Mas o momento em que a autora deu mais nítidos sinais exteriores de comoção foi quando tropeçou sem aviso no poema que ela própria escrevera por ocasião da morte de Sophia de Mello Breyner Andresen, em 2004, e que termina com os versos: “Voltaste à terra branca, e na cidade/um sino bate a hora como se o dia/ de hoje apagasse um foco incendiário.// Teu fogo porém vivo, é de outra chama/ e a cama onde te deitas, doutra cambraia/ e a praia onde te banhas, de outra água."

As montras de todas as lojas, quase sem excepção, tinham livros de Lídia Jorge ou fotografias da autora e das capas de alguns dos seus romances. À mistura com os produtos que vendessem, de sapatos a ferragens, de medicamentos a roupas. Numa delas, a sapataria Casanova, a escritora partilhava o espaço com romances de Eça de Queiroz. Noutra, uma grande fotografia de Lídia Jorge aparecia emoldurada por uma ampla variedade de lingerie feminina. O PÚBLICO soube depois que se tratava já de um clássico do Escritaria, e que entre os antepassados dos soutiens que agora rodeavam Lídia Jorge se tinha já acolhido, em 2009, o Nobel da literatura José Saramago, ao que contam para grande divertimento da sua mulher, Pilar del Río. 

A tarde de sexta-feira, terceiro dia do festival, que termina este domingo, culminou com o descerramento de uma frase de Lídia Jorge, que a própria escolheu, e que ficou escrita em letras de metal à entrada da biblioteca municipal, um lugar, observou o presidente da Câmara, onde “só entra quem gosta de livros”. “Não há livro de instruções para salvar a vida: Só a literatura se aproxima desse imenso livro” foi a passagem escolhida por Lídia Jorge, que se tornará agora parte de um percurso que inclui frases de todos os anteriores homenageados: Urbano Tavares Rodrigues, Saramago, Agustina, Mia Couto, António Lobo Antunes e Mário de Carvalho.

As restantes frases de Lídia Jorge espalhadas pela cidade, impressas em caixotes de cartão, no reverso de sinais de trânsito com a indicação “perigo de contaminação literária”, em autocolantes com formato de pé colados no chão, ou em gigantescos post-it amarelos nas paredes e varandas, vão acabar nas casas dos penafidelenses. Há muitos coleccionadores locais de memorabilia da Escritaria, diz o fundador do festival, Alberto Silva Santos, que continua a coordená-lo em regime de “serviço voluntário”.

Também essas frases que invadiram o centro histórico foram sugeridas pela autora, que parece ter querido apostar na diversidade: algumas são convencionais (“a liberdade foi uma conquista extraordinária”), outras aforísticas (“interessam-me os heróis da retirada”), outras marcadamente literárias (“vestido de interior cingido, branco, que brilhava na obscuridade como papel prateado”), outras desconcertantes (“não tem camisa e esbraceja”) e outras ainda um tanto inquietantes (“tenho uma meta que não confesso”). 

O terceiro dia do Escritaria acabou, à noite, com uma entrevista ao vivo a Lídia Jorge, conduzida pelo jornalista Fernando Alves. No sábado e domingo, cerca de duas dezenas de amigos – incluindo o homenageado do Escritaria de 2013, o escritor Mário de Carvalho – falam da autora e da sua obra.

Na conversa com Fernando Alves, que já não haverá espaço para resumir aqui, a autora explicou que as suas “grandes matriarcas” eram Agustina Bessa Luís e Sophia.  E num festival como este, do qual até um escritor com problemas de auto-estima se arriscaria a sair perguntando aos seus botões de que é que estarão os suecos à espera para lhe darem o Nobel da Literatura, Lídia Jorge demonstrou que estes dias de intensiva massagem ao ego não a afectaram excessivamente: “Se a Sophia fosse viva”, disse, “é claro que ela é que estaria aqui, ou já teria estado, e não eu”.
 

 

O PÚBLICO esteve em Penafiel a convite do Escritaria

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