O baile de TochaPestana quer ser do rock e das discotecas

Música Moderna marca a estreia em disco do duo TochaPestana, inspirado no imaginário do baile popular e na imersão num Cais do Sodré que está a desaparecer. A festa baile-turbo-punk é hoje apresentada no Porto e amanhã no Funchal.

Videoclipe de TochaPestana

Em Julho deste ano, dez dias antes do arranque da 33ª Concentração Motard de Faro, TochaPestana partilhavam na página de Facebook o vídeo que documenta a sua passagem, em 2009, por esse mesmo momento muito particular do calendário estival português.

Num pequeno palco instalado junto à ampla zona de refeições, em fim de tarde, a aparição de dois sujeitos de casacos vermelho e amarelo metalizados, bigode a preceito, sintetizador a debitar batidas plásticas e sons do mais engalanado baile de aldeia, e os gestos excessivos e teatrais de Gonçalo Tocha como um discípulo de Marco Paulo largado em terreno inóspito parecem, num repente, algo passível de figurar entre o catálogo de números com que Andy Kaufman forçava as fronteiras do humor. O esgar de incredulidade, de desconforto, mas sobretudo de incerteza em como reagir perante aquele espectáculo salta facilmente para as imagens.

Aquilo que também se percebe, entre as dezenas de motards de pescoço desviado das atenções das mesas corridas onde se reúnem em torno de cerveja, comeres e trocas de palavras, é uma espera que tanto pode antecipar uma vaia mais ou menos enfática e uma ovação glorificadora. Quando terminam esse primeiro tema, “Tara” – e depois de desemalada por Dídio Pestana uma guitarra eléctrica que ajuda à frenética dança e performance cantada e gritada que empurram Tocha de Marco Paulo para excêntrico espécime rock’n’roll –, a reacção perante o invulgar duo nada tem de hostil. Uns voltam novamente os pescoços para as mesas, não embarcando na viagem proposta mas eliminando qualquer vestígio de eventual ofensa; os restantes aplaudem de sorrisos escancarados, de quem identificou ali uma ideia de entretenimento que, apesar da crueza cénica, serve para animar os convivas.

“Geralmente os nossos concertos correm muito bem ou muito mal”, descreve Gonçalo Tocha ao ÍPSILON. Essa primeira investida na Concentração Motard de Faro, onde voltariam numa posterior edição, encontra-se na categoria que o vocalista descreve como “momentos míticos da dupla”. “Foi uma coisa mágica e funcionou muito bem por se tratar de uma questão de virgindade – nossa e deles.” A presença de TochaPestana no evento fazia parte da proposta de provarem em cima do palco que a sua música fazia sentido “na discoteca, no baile da aldeia, no festival, ao ar livre, em sítios pequenos ou festas de casamento”.

Foto
TochaPestana assumem como “entrave” o facto de não ser totalmente evidente se a fé que praticam musicalmente é uma apropriação irónica da música popular Nuno Carvalho

Ainda assim, talvez nenhum outro cenário se desvele tão sem atrito na vida de TochaPestana quanto o lisboeta Cais do Sodré. Foi no périplo pelo mundo permitido pelos bares daquele pólo de animação nocturna de ambientes tipicamente portuários, habitados outrora por prostitutas e homens de barba rija, que a ideia do duo marcadamente popular começou a insinuar-se com crescente veemência. Era por ali que Tocha então vivia e era naquelas ruas que juntamente com Pestana carimbavam no passaporte boémio, numa só noite, visitas a Copenhaga, Oslo, Chicago, Liverpool, Roterdão, Arizona, Tóquio, Hamburgo, Shangri-La e Viking. “Ainda tivemos a sorte de apanhar essa rua tal como vinha dos anos 70 quando saíamos aqui em 2005”, afirma Tocha. “Frequentávamos os bares, íamos muito ao Viking e era aqui que encontrávamos a nossa rainha, a Adélia, uma cabo-verdiana de 50 e tal/60 anos que nos tratava por meninos. Tudo aqui era o nosso imaginário, que fervilhava e podíamos concretizá-lo nesta rua”, continua o cantor olhando em volta. Estamos a dois passos do Music Box, sala onde TochaPestana apresentarão horas mais tarde o seu primeiro álbum, Música Moderna.

Alinhados com o inebriamento daquela zona indiferente às transformações no resto da cidade, Tocha e Pestana limpavam as noites para irem até ao Cais do Sodré, “como símbolo de qualquer coisa que sabíamos que ia acabar em breve”, descreve Tocha. “Toda a gente o sabia, porque falávamos com as mulheres daqui e com os homens dos bares e todos eles nos falavam dos gloriosos anos 70 e 80. A Adélia dizia-nos que aquilo era lindo, com mulheres da vida que viviam em casas de alterne, e contava aquilo com um brilho nos olhos, porque para ela era uma festa todos os dias, estava sempre cheio, cheio, cheio.” Os dois começaram então a encarar as visitas como um acto de religiosidade, um ritual de repetição absolutamente necessário para se reclamarem daquele lugar. “Para nós, aquilo equivalia a praticar a nossa fé todos os dias”, dizem. E é como celebração dessa rotina e de resistência contra o seu fim que começaram a criar uma canção que é hoje o grande clássico do duo: “Pratica a Tua Fé”. Fé, como facilmente se imagina, é para estes dois um fonema inventado com o mero propósito de poder rimar com Sodré. É esse o uso que lhe dão, é esse o slogan que carregam no peito (literalmente, em t-shirts com “Pratica a Tua Fé” estampado em destaque).

Pratica a Tua Fé

É com essas mesmas t-shirts que sobe ao palco do Music Box o Coro da Universidade de Lisboa, representado por 14 raparigas que ajudam “Lisboa” a levantar-se como uma canção pop-disco de tom épico. Debaixo de fios que atravessam a sala e de onde pendem bandeirinhas coloridas como num arraial de Santo António, TochaPestana apresentam um espectáculo cheio de truques de encher o olho, aparentemente coreografado ao milímetro. Tocha muda de roupa a cada par de temas e esses momentos estão devidamente anotados no alinhamento. Mas a verdade é que, pouco antes de o concerto começar, vasculha os sacos com as singulares farpelas (“calças de cobra”, casacos à Michael Jackson…) nos bastidores, procurando certificar-se que não faltam as peças coleccionadas entre a Feira da Ladra e Berlim (onde Pestana vive há vários anos), dispostas depois em cabides no palco sem grande rigor.

Só que durante o espectáculo o arsenal de gadgets mostra o quão pensada e preparada é a actuação. Tocha tem um telecomando com que acende e muda a cor das luzes intermitentes do teclado de Dídio, desaparece por uns segundos para regressar tocando uma consola rítmica escondida dentro das calças, na zona genital, carrega a voz de efeitos e reverberação, fazendo pensar no que seria a música perfeita para uma pista de carros de choque em qualquer feira popular. O povo que se vai juntando na noite de sexta-feira no Music Box reage com euforia às deixas de Tocha. Ora parece extasiado com uma rave comandada pela performance de Tocha e pela guitarra de Pestana esparramada por cima de batidas simples que lhes permite sonhar com a ocupação de discotecas, ora se retira para o fundo nalguns pares românticos, como numa boîte de província quando o cantor anuncia “Piano-Bar” (canção inspirada pelos numerosos engates pouco esforçados e muito alcoolizados de fim de noite a que assistiram naquela rua) dizendo “Esta é a música do vosso amor”. O delírio chega depois com a participação especial de Dina, cantora popularíssima nos anos 80 e desaparecida desde então, para cantar ao lado de TochaPestana o seu single “Pássaro Doido”, em acentuada marcha hard rock.

Pouco depois, Gonçalo Tocha despede-se do público pela primeira vez: “Obrigado, Texas!” Quando diz Texas, refere-se ao nome do bar que ali antes existia no espaço hoje ocupado pelo Music Box. Daí que a relação do cantor com a sala misture amor, rancor e gratidão. “Apresentarmos aqui o disco é irmos para a boca do lobo”, confessa, ao eleger aquele como o espaço que inaugurou a transformação recente do ambiente do Cais do Sodré, empurrando o imaginário adorado pelo duo para o passado. “Agora, com esta distância, já me pacifiquei com a ideia”, desabafa, lembrando que foram assistindo, diariamente, a todo o interior ‘texano’ a ser esventrado. Mas descartado o Viking para o concerto de lançamento de Música Moderna, uma vez que teriam de terminar e desocupar o palco antes do horário da sagrada sessão de strip, o interesse manifestado pelo Music Box foi determinante. “Nesta fase”, acrescenta Tocha, “em que ninguém está a pegar em nós e ninguém nos leva a sério, temos de ter bóias de salvação”.

A não separação das águas

Foto
Mesmo em Lisboa, garante Gonçalo Tocha, é possível “apanhar bons bailaricos – no Santo António, em Alfama” Nuno Carvalho

TochaPestana assumem como “entrave” o facto de não ser totalmente evidente se a fé que praticam musicalmente é uma apropriação irónica da música popular ou se é um investimento de empenho impoluto. Até porque, de início, concedem, havia “claramente uma provocação”. Mas, com o tempo, a provocação esbateu-se e ficou apenas a proposta musical. “Uma coisa que nos impressiona é a questão da elite”, diz Tocha, “é a separação das águas do conceito (mental, não é físico) do que é música séria e não séria. Interessa-nos os cantores abandonados e as bandas perdidas que podem ser considerados chungas, mas o que queremos é a não separação das águas, em que tudo é possível – o hard rock, o tecno, a música de baile.”

O olhar sobre TochaPestana pode então, naturalmente, encaminhar-se para duas batalhas distintas, consoante o local onde decorre a actuação. Em Faro ou nas Festas de Nossa Senhora da Aldeia da Ponte, onde tocaram numa peculiar primeira parte de José Malhoa – o cantor de “24 Rosas” tinha um palco generoso, extremamente bem equipado em matéria de som e luzes, o duo TochaPestana actuou num apêndice mínimo colocado ao lado do outro, com dois focos de luz e um mini-PA, enquanto o público aguardava em frente ao palco principal pela chegada de Malhoa –, a batalha é a da autenticidade e genuinidade. Sem o contexto certo, “as pessoas podem achar que se está a parodiar as coisas de que gostam”. “E nós gostamos mesmo”, asseguram, “mas estamos a fazer à nossa maneira”. Numa sala como o Music Box, a batalha pode ser a da excentricidade, não tocando para o público habitual deste tipo de música. Mas mesmo em Lisboa, garante Gonçalo Tocha, é possível “apanhar bons bailaricos – no Santo António, em Alfama”. Foi aí que o cantor assistiu a concertos da dupla Nelson & Nelson, recolhendo a deixa “ai que noite” que repete no tema “Baila Comigo”.

Em Guimarães, enquanto trabalhavam no filme Torres & Cometas para a Capital Europeia da Cultura realizado por Tocha, tomaram então contacto com uma estrutura ultra profissional destes duos e pasmaram com a existência de fenómenos locais como Zé Amaro, que desloca todo o seu material em grandes camiões, celebrado como estrela maior de uma cultura que escapa por completo aos grandes centros urbanos. “Claro que houve um momento em que tínhamos a ilusão de que podíamos também entrar nesse mercado como alternativa”, desabafa Tocha. “Pensámos que dava para ter as duas coisas em paralelo, mas não funciona assim.”

A dedicação de Tocha ao cinema, aliás, foi motivando o adiamento da estreia em disco do duo. Tocha quase desanimava nesse período, achando que surgiriam outras bandas a pegar em ideias semelhantes, enterrando TochaPestana num segundo ou terceiro plano. “Não entendemos como não surgiu nada”, espantam-se. Talvez porque poucos abordem a música com este desprendimento. “Não pensamos sobre a nossa música – fazemo-la e vivemo-la. Nada disto é escrito ou pensado. O que é maravilhoso aqui é a liberdade total.” Essa liberdade passa também por conquistar um lugar para encenar “sonhos e fantasias”. Tocha e Pestana são personagens – mas apenas enquanto versões extremas de uma possibilidade de pessoa que Gonçalo e Dídio poderiam ser.

Sugerir correcção
Comentar