Este homem tinha um compositor clássico dentro de si

Love foi a libertação de Damon McMahon, o líder dos Amen Dunes. O disco em que se aproximou das canções tradicionais, quando a ideia era fazer um álbum de jazz espiritual. Confusos? Na dúvida é ir vê-lo: hoje em Guimarães, amanhã em Lisboa.

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Um dia Damon McMahon (que para quem não sabe é o homem por trás dos Amen Dunes, que para quem não sabe são uma banda) teve uma ideia: fazer um disco que soasse a “Elvis acompanhado por Alice Coltrane e Pharoah Sanders”.

Ok, admitamos que não é uma ideia tão revolucionária quanto aquela de Maxwell (de que um campo magnético induz electricidade) ou a outra de Heisenberg (de que quando sabemos a velocidade de um electrão não conhecemos a sua posição e vice-versa); e também não parece tão comercialmente viável quanto uma das que os Beatles tiveram (juntar o blues às melodias e harmonias católicas) ou mesmo a que ocorreu aos Led Zepellin (pegar em melodias do blues e da música celta, enchê-las de electricidade, levá-las ao expoente máximo da sudação sexual e nada disso soar ridículo), mas ainda assim temos de admitir que é uma ideia incomum.

Há que fazer um parêntesis para notar que “os discos [que Elvis gravou] na Stax são o mais próximo que há disso”, como lembra (e bem) o próprio McMahon ao telefone. Tentamos por um segundo imaginar o que poderia ter sido tal encontro e o que nos ocorre é Elvis a fazer o seu número de crooner enquanto por trás metais e harpas içam as canções para os céus.

Mas, claro, não só não temos de imaginar o que quer que seja como o disco não é nada disto. Antes de mais, Love, dos Amen Dunes, anda aí desde Maio e não lembra Elvis com Alice e Pharoah – podemos estar a ser picuinhas, mas antes nos ocorre um Dylan acompanhado por Jason Pierce, dos Spiritualized, e arranjado por Van Dyke Parks, claramente bêbado, todos gravados numa cave cheia de mofo por um engenheiro surdo.

Love é uma variação espacial e psicadélica da folk, com uma especial apetência por melodias que se escondem à socapa nos interior dos nossos ouvidos, e por harmonias que nos impelem para cima da atmosfera, onde o ar é rarefeito e o cérebro delira. E para nossa sorte vamos poder ouvi-lo ao vivo – hoje no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, em Guimarães, onde integra o o cartaz do festival Mucho Flow, e amanhã na ZDB, em Lisboa, no que é o segundo (após os Lust For Youth) dos concertos de comemoração do 20.º aniversário desta associação.<_o3a_p>

Para tornar tudo ainda mais estranho, esta história envolve nem mais nem menos do que os sempre misteriosos Godspeed You Black Emperor, de acrónimo GYBE!, sendo que o ponto de exclamação varia de posição conforme lhes dá na gana. “Isto começou com um convite dos GYBE! para ir em digressão com eles”, conta McMahon. “Eles são fãs dos Amen Dunes”, revela, para nosso espanto – pensávamos que os GYBE! não ouviam música, ocupados que andam sempre a salvar o mundo, ou que, se ouvissem, apenas da soviética.

“Devo dizer em defesa deles”, começa McMahon, “que na vida real são iguais ao que transparece na música e no que dizem publicamente. Muitas bandas têm uma personalidade artificial, mas eles não: são autênticos”, continua, “talvez até demasiado autênticos. E são tipos escuros à brava. É isso que são”, termina, deixando-nos contentes, porque há mitos que devem permanecer.

 

Uma dor, um disco

Até Love, os discos de McMahon haviam sido, na realidade, obras a solo sob um nome colectivo, e a sua natureza improvisacional não se aproximava das redondezas da canção tradicional. Mas McMahon, que se define como “muito esquizofrénico”, tem “um straight composer” dentro de si. “No meu âmago sou um escritor de canções. Agora, há composição straight, como a do Elton John, e há escrita inteligente de canções." O exemplo máximo disso é, hélas, “Bob Dylan”.

Estava então McMahon em digressão com os GYBE! quando lhe ocorreu que o que lhe apetecia mesmo era “deixar a folk lo-fi psicadélica” e fazer “um disco de jazz espiritual”, algo que não lhe é completamente natural: “Eu não sou o tipo de pessoa que compõe a pensar logo num arranjo de saxofone ou de flauta. Eu e o meu irmão tínhamos uma piada que era o acoustic challenge: pegas numa canção qualquer, tiras os arranjos e tocas na guitarra acústica; se soar mal é porque a canção é uma merda e são os arranjos que disfarçam. Eu componho de modo a que a canção possa ser tocada com uma guitarra e um piano. Para mim a canção é o mais importante e não interessa se tem um ou 20 acordes. Basta-me um pequeno trecho e tenho uma canção." 

(Tem uma teoria sobre a sua forma de compor que é, digamos, estranha: “Por vezes tenho melodias na minha cabeça, mas normalmente o que acontece é sentir-me inspirado, tocar uns acordes e sair uma melodia. É como um laxante. Mas ainda bem que neste caso não saiu algo merdoso.")

Portanto, McMahon está em digressão com os GYBE!, a sua relação amorosa está “complicada”, no seu cérebro ecoam “canções de pessoas como Marvin Gaye, Sam Cooke, Van Morrison”. Ocorre-lhe então que apesar de sempre ter feito discos baseados na improvisação e no momento, o melhor passo a dar é gravar um disco de jazz espiritual com os GYBE! “Era o meu lado clássico a querer sair, meu. A dor trouxe o meu lado clássico ao de cima."

Um segundo parêntesis (ou terceiro, quem sabe, ninguém está a contar) deve ser feito para deixar claro que a malta dos GYBE! e afins tem jeito para banda de suporte, como se pode ouvir em North Star Deserter, de Vic Chesnutt. Mas não com McMahon.

“Na realidade eu não lhes dei muito espaço. Sabia desde o início que com o feitio que eles têm o melhor era não os deixar fazer o que quisessem. Não os convidei a tocar nas canções erradas. Eu sabia quem era mais apropriado para cada canção." 

Para quem costumava fazer discos em duas semanas, o processo “levou mesmo muito tempo”. “O mais difícil é misturar. Quando estás a gravar uma canção, os arranjos são divertidos, porque fazes um quebra-cabeças sobre aquilo de que a canção precisa; e compor é em parte inspiração. Mas misturar passa muito por ouvir e reouvir e isso é penoso." 

No fim, Love, um disco escrito durante o fim de uma relação, demorou mais de um ano a fazer, sem intervalos. A dada altura McMahon “estava farto das canções”. Não fez um disco de jazz espiritual, mas sim um tremendo álbum de folk psicadélica espacial, e deitou fora "muito" do que gravou com os GYBE!, confessa. Agora, como tratamento, vai gravar na Primavera e quer “pura energia, algo muscular, mais rápido”, com guitarra eléctrica. Em Portugal, já sabem o que vos espera: “Pode acontecer tudo. Vamos improvisar." Um pouco maluco, este nosso amigo.<_o3a_p>

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