Passos, Costa e a falta de escrutínio

Façam o favor de revirar a vida de António Costa, falem com os seus inimigos, investiguem os seus aliados, passem a pente fino as contas da campanha das primárias, irritem-no muito.

Em Junho deste ano, no meio do seu fervoroso embate contra o Tribunal Constitucional, Pedro Passos Coelho defendeu publicamente um “escrutínio muito maior” dos juízes do Palácio Ratton, dadas as enormes responsabilidades que lhe estão confiadas. E acrescentou: “Nos Estados Unidos da América existe um escrutínio extremamente exigente.”

Passos estava a falar dos juízes do Tribunal Constitucional – mas poderia perfeitamente estar a falar de si próprio e do cargo de primeiro-ministro. As explicações que ele deu na Assembleia da República a propósito do "caso Tecnoforma" são um bom exemplo da escassez de escrutínio existente em Portugal. Elas foram, ao mesmo tempo, eficazes e miseráveis. Eficazes, porque se não surgirem novos documentos ou novas denúncias é impossível saber quanto é que Passos Coelho recebeu da tal ONG que ninguém sabe que contributo ofereceu à humanidade ou, mais modestamente, para que é que servia, afinal. Miseráveis, porque até a minha filha de dois anos percebeu que Passos não estava a contar toda a verdade, e essa falta de transparência não abona a seu favor – sobretudo porque a carta anónima que o denunciou, e que entretanto já pudemos conhecer na íntegra, é muitíssimo plausível e detalhada.

Mas não é só a seu favor que este caso não abona. Também não abona a favor do jornalismo português, que consecutivamente se esquece, de eleição para eleição, de fazer o seu trabalho de casa – e depois anda a correr atrás de denúncias anónimas, quando as máquinas de spin já estão com as orelhas levantadas. Vai sendo hora de uma mudança nesta postura. Convinha que jornais e televisões começassem a colocar na sua “to do list” pré-eleitoral o tal “escrutínio extremamente exigente” que Passos advoga para os juízes do Constitucional, mas não para si próprio.

Esqueçamos por um momento aquilo que o primeiro-ministro realmente fez no tal Centro Português para a Cooperação. Pergunto: será normal os portugueses não conhecerem, até ao mínimo detalhe, todas as actividades que um primeiro-ministro – o político mais poderoso do país – exerceu durante a sua carreira? Atenção: não estou a falar de conhecer as trafulhices que fez ou deixou de fazer. Essas, por definição, tentam esconder-se. Estou a falar de conhecer as actividades que efectivamente desempenhou, quais os empregos e as funções que teve ao longo da vida. Tudo isto deveria ser público – mas, como se tem visto pelo "caso Tecnoforma", não é. E, infelizmente, neste caso não se trata de uma falha de Passos Coelho – trata-se, em primeiro lugar, de uma falha dos jornais e dos jornalistas.

Donde, agora que o Partido Socialista acaba de eleger um líder novinho em folha, e que com altíssimas probabilidades vai ser o futuro primeiro-ministro, convinha que a comunicação social não permanecesse no seu cochilo, e começasse já hoje a fazer aquilo que é comum em qualquer país civilizado, mas que por cá só se faz tarde e a más horas: um escrutínio apertadíssimo do passado de quem quer ir viver para São Bento. Façam o favor de revirar a vida de António Costa, falem com os seus inimigos, investiguem os seus aliados, passem a pente fino as contas da campanha das primárias, irritem-no muito. O passado dos nossos políticos tem de passar a ser seriamente vasculhado antes das eleições. Não é só um direito nosso, enquanto cidadãos – é um exercício essencial para proteger a qualidade da nossa democracia e o próprio futuro de quem pretende mandar em nós.

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