Isto é Saramago "vintage"

Alabardas, Alabardas, o romance que Saramago deixou inacabado, foi apresentado esta quinta-feira em Lisboa na Fábrica de Braço de Prata, que aparece referida nesta obra sobre a indústria da guerra. É Saramago no seu melhor, “vintage”, diz o editor brasileiro.

Saramago em sua casa, em 2008
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Saramago em sua casa, em 2008 Nuno Ferreira Santos
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Fábrica de Braço de Prata, Lisboa, Interiores - sector de fundição Fotografia sem data. Produzida durante a actividade do Estúdio Mário Novais: 1933-1983. Estúdio Mário Novais/Cortesia da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian
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Fábrica de Braço de Prata, Lisboa, Interiores- sector de produção e equipamentos. Fotografia sem data. Produzida durante a actividade do Estúdio Mário Novais: 1933-1983. Estúdio Mário Novais/Cortesia da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian

Hoje as salas e corredores onde chegaram a trabalhar 12 mil operários estão cheias de livros, pintura e fotografia. A maquinaria onde se produziam espingardas e munições desapareceu e há agora um café, espaços de concerto e pequenas galerias, pessoas a tomarem o pequeno-almoço e crianças a fingirem que lêem muito baixinho sentadas em bonecos insufláveis. Na Fábrica de Braço de Prata já não se fazem armas, mas a memória desse passado – que faz parte das memórias do próprio José Saramago, que estudou num liceu a pouco mais de 100 metros – ainda lá estão.

“José escolheu esta fábrica porque era muito importante na época em que estava a funcionar e porque se lembrava dela, dos operários, da fachada”, diz Pilar del Río, mulher e presidente da fundação do Nobel da Literatura que morreu em 2010, deixando por acabar o romance Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, que esta manhã foi apresentado neste complexo fabril desactivado na década de 1990. Pilar não acredita que Saramago soubesse que a fábrica se tinha transformado num centro cultural quando a foi buscar como referência para a sua Produções Belona S.A., mas isso é o que menos interessa no contexto de um livro em que o escritor se vira contra o negócio de armas e os fazedores de guerras a partir de um funcionário da indústria bélica que foi casado com uma pacifista.

Artur Paz Semedo, garante o ensaísta Eduardo Lourenço, leitor atento do autor de Memorial do Convento, Ensaio sobre a Cegueira ou A Viagem do Elefante, é este homem “numa situação quase burlesca”, “personagem contraditória” que mergulha no arquivo de uma fábrica de armas. “Saramago gostava destes cemitérios que são os arquivos”, lembra Lourenço, enquanto acompanha a visita à fábrica, em que participam os editores português, espanhola, brasileiro e italiano deste Alabardas, Alabardas (Manuel Alberto Valente, Pilar Reyes, Luiz Schwarcz e Gianluca Foglia), Pilar del Río, Roberto Saviano, jornalista e escritor italiano, e o juiz espanhol Baltasar Garzón, sempre associado à defesa dos direitos humanos, para quem “um livro de Saramago é sempre um acto revolucionário”. Alabardas, Alabardas, acrescentou, depois de Saviano ter chamado ao autor de Todos os Nomes “um escritor perigoso”, “apela à desobediência civil frente a uma indústria da morte” que faz da vida humana “um bem descartável”.

Com os editores a lembrarem que o romance foi iniciado logo a seguir a Caim, publicado em 2009, quando José Saramago estava já muito doente, foram constantes ao longo da manhã as referências ao forte poder simbólico desta última reflexão do escritor – uma reflexão sobre os abusos do poder, sobre as manipulações e os negócios que estão por trás das guerras (em Alabardas detém-se na de Espanha, fala na do Chaco, que opôs o Paraguai à Bolívia, e da que Itália travou com a Abissínia, actual Etiópia), sobre a indústria da morte, quando ela se aproximava do próprio escritor.

Tudo feito “de forma clara”, garante Lourenço, e com muito cuidado, já que, diz Saramago neste último livro, “burilar a frase é o mais importante nas comunicações entre humanos”.

Insistindo na actualidade de Alabardas, dadas as guerras no Iraque ou na Síria, os editores explicaram ainda porque tinham optado por não publicar isoladamente as cerca de 30 páginas que Saramago deixou, revistas e corrigidas como sempre fazia, com as respectivas notas do autor sobre o processo de criação do romance (as edições portuguesa e espanhola têm textos do seu biógrafo, Fernando Gómez Aguilera, e de Saviano; a brasileira acrescenta-lhe ainda outro do antropólogo Luiz Eduardo Soares).

Aguilera, disse Pilar Reyes, da Alfaguara, insere o livro no corpo dos mais de 40 títulos do autor; o jornalista Roberto Saviano, autor de Gomorra, livro sobre a actuação da Máfia e a sua relação com as instituições italianas, entra em diálogo com os três capítulos de Saramago, acrescentou Valente, da Porto Editora.

De qualquer forma, lembrou Pilar del Río, as páginas que o escritor deixou são definitivas: “Estas páginas estão acabadas, o romance é que está incompleto.” Um romance que é “Saramago vintage”, assegurou Luiz Schwarcz, “uma obra de grande qualidade literária”. Para o editor brasileiro da Companhia das Letras, os textos que acompanham o inédito são uma forma de apresentar as provocações que encerra, algo que aconteceria naturalmente se Saramago não tivesse morrido antes de escrever a frase “Vai à merda”, “remate exemplar” que escolhera para este romance, diz-nos nas notas agora publicadas. “O diálogo com o público se daria fora do livro, se a obra estivesse completa”, explica Schwarcz, admitindo que “não cabia para Saramago a possibilidade de publicar uma coisa por acabar”.

Porquê, então, editar um romance incompleto? Porque Saramago tinha ainda algo a dizer aos seus leitores, porque o texto em causa tem uma “impressionante actualidade”, porque o que agora podemos ler – três capítulos espalhados por 77 páginas mais umas notas breves – é um produto acabado.

Pilar, disse, nunca conversou com Saramago sobre a hipótese de vir a publicar algo do escritor que não estivesse terminado. Isso não faria sentido com Saramago vivo, explicou, mas não se esquece que um dos últimos livros que devorou foi um Thomas Mann inacabado e que ficara muito feliz com a notícia da publicação de um volume que Albert Camus deixara sem ponto final.

Contra a morte

Ao contrário de Schwarcz, que coloca parte do valor simbólico do livro no facto de ter sido escrito por um homem que lutava contra a morte, o ensaísta Eduardo Lourenço prefere ler Alabardas, Alabardas como uma obra que mantém paralelos evidentes com outras do universo de Saramago, como O Ano da Morte de Ricardo Reis e Todos os Nomes: com a primeira mantém o ano de referência, 1937, com a segunda a ideia do arquivo – “prateleiras carregadas de mortos”, escreve.

“Tudo o que morre pede uma ressurreição, lembra o Memorial… Saramago gosta de arquivos e cria aqui uma personagem que é também uma vítima. Mas ele nunca se vitimiza. Não é que ele a deseje, mas a morte é-lhe natural. É sempre assim para quem, como ele, aceitava a vida com uma naturalidade extrema. Por isso não era um romântico patético – era calado, silencioso, guardava a sua criatividade para os fantasmas das suas obras.”

Alabardas, resume, “é uma declaração de guerra aos autores da guerra” feita por um pacifista, e “em tom de fábula como lhe era costume”. Está lá a Guerra Civil de Espanha a partir de André Malraux, porque foi com ela que, diz Lourenço, a sua geração, a mesma de Saramago, nasceu politicamente.

Alabardas, Alabardas, com lançamento mundial marcado para o Teatro D. Maria, em Lisboa, dentro de pouco mais de uma hora, devia ter saído em 2010. É pelo menos isso que Saramago escreve a 24 de Outubro de 2009, numa das suas notas sobre o romance em curso: “Aqui deixo a promessa de trabalhar no novo livro com maior assiduidade. Sairá ao público no ano que vem, se a vida não me falta.” A vida faltou-lhe, já sabemos.

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