Gardunha, um território à procura dos seus escritores

Três dezenas de escritores viajaram este fim-de-semana até ao Fundão para a primeira edição de um novo festival literário em torno da viagem. A Serra da Gardunha oferece-se como espaço de liberdade e criação.

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O fotógrafo Pedro Loureiro passou uma semana em residência na Serra da Gardunha: percorreu o território com o espírito das missões fotográficas do século XIX PEDRO LOUREIRO
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O fotógrafo Pedro Loureiro passou uma semana em residência na Serra da Gardunha: percorreu o território com o espírito das missões fotográficas do século XIX PEDRO LOUREIRO
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O fotógrafo Pedro Loureiro passou uma semana em residência na Serra da Gardunha: percorreu o território com o espírito das missões fotográficas do século XIX PEDRO LOUREIRO

“O que nos leva a viajar quando podemos ver na televisão o interior de um formigueiro ou a superfície de Marte?”, perguntou o escritor de viagens espanhol Javier Reverte na sessão inaugural do 1.º Festival Literário da Gardunha, que decorreu este fim-de-semana entre Fundão, Alpedrinha e Castelo Novo. O que leva um escritor a viajar, e o que levou afinal 30 escritores à Serra da Gardunha este fim-de-semana para participarem nesta iniciativa da Câmara Municipal do Fundão, da editora A23 e do Grande Turismo?

O convite, explicou o presidente da Câmara, Paulo Fernandes, partiu da vontade de dar a conhecer “paisagens novas, latitudes diferentes, novas geografias”. De atrair criadores para uma região, a Gardunha, que no passado inspirou outros escritores, de Vergílio Ferreira a Eugénio de Andrade, e que, recordou, foi sempre “um espaço de liberdade”, em grande parte também pelo papel histórico do Jornal do Fundão. Nesta primeira edição, o Festival Literário, que tem como mote A Viagem Começa Aqui, convidou os escritores Alexandra Lucas Coelho e Tiago Salazar e o fotógrafo Pedro Loureiro para três residências artísticas na região.

“Viajamos porque temos outros sentidos para além da vista, e precisamos de estar nos lugares”, resumiu Javier Reverte, antigo jornalista, que falou dessa figura do escritor de viagens, ainda pouco valorizada em Espanha, e da sua forma particular de viajar, que já o levou a percorrer grande parte do mundo no papel de “ladrão de almas”. “Viajo para um lugar conduzido por uma emoção”, explicou. E, no seu caso, essa emoção vem muitas vezes de um filme ou de um livro. “Todas as grandes viagens começam numa livraria.”

Na sessão seguinte, com Fernando Paulouro Neves, escritor e antigo director do Jornal do Fundão, e Alexandra Lucas Coelho, a pergunta continuou: o que leva alguém a querer estar “no olho do furacão”? “O que me levou a ser jornalista foi querer escrever e conhecer o mundo. Escrever era uma forma de conhecer o mundo, conhecer o mundo era uma forma de escrever”, disse a autora de, entre outros, Caderno Afegão, Vai, Brasil e Viva México (todos edições Tinta-da-China). Um escritor que viaja quer aproximar-se desse “ponto de vitalidade absoluta de qualquer coisa”, explicou, sublinhando que não se vê como viajante profissional nem como escritora de viagens. “Há uma força que nos atrai para o centro, onde achamos que vamos ver melhor. Qualquer texto anda atrás desse ponto. E a viagem também.”

 

O horizonte total

O que o Festival da Gardunha quis foi criar uma força que atraísse também os criadores para este território do interior, um pouco esquecido. Pedro Loureiro passou a última semana a fotografar a Serra da Gardunha, cujos caminhos percorreu acompanhado por um guia, à descoberta das paisagens de pedra que não conhecia – “Este era o único território português que não conhecia, julgo que em grande parte porque a Serra da Estrela absorve tudo à volta” – mas também das pessoas. Encontrou ainda muitos pastores, o que o surpreendeu, olhou a serra (também) a partir dos textos dos escritores que no passado sobre ela escreveram, descobriu na Internet histórias de ovnis na região, cruzou-se com o que resta de um colégio jesuíta, e viajou por tudo isto com “o espírito das missões fotográficas do século XIX”. Cinco dias foram pouco, por isso irá voltar por iniciativa própria para continuar um trabalho que há-de resultar numa exposição e possivelmente num livro.

Tiago Salazar, autor de Endereço Desconhecido, e que acaba de lançar Crónicas da Selva, passou a sua residência na aldeia de Janeiro de Cima, e como acredita que “os lugares são as pessoas” partiu à descoberta dos habitantes, passando muitas horas no Café Cardoso, que tem Internet e que se transformou no seu escritório temporário. Isso permitiu-lhe descobrir a figura do Cardoso, “um homem centenário, que morreu há pouco tempo, e que foi guitarrista de guitarra portuguesa”. "Janeiro de Cima para mim vai ser o Cardoso”, diz. Mas vai ser também a tentativa frustrada de apanhar uma barca para viajar “pelo menos até Janeiro de Baixo”, e constatar que não havia nem barqueiro nem barca disponíveis. E vai ser a lesma que atravessou a sala da sua casa, e que o levou a pensar se valeria a pena contar o tempo que ela demorava nessa viagem.

Para Tiago Salazar – que durante a estadia esteve também com alunos de escolas da região para falar das suas viagens –, Janeiro de Cima há-de transformar-se em textos. E é esse o propósito destas residências: o território oferece-se aos escritores para que eles o transformem em escrita.

Alexandra Lucas Coelho, que ficou na aldeia de Castelo Novo e passou por uma escola de Alpedrinha para falar aos alunos, acredita que, sobretudo no interior, pode fazer a diferença esta aproximação entre os estudantes e a figura do escritor. “É importante esta sensação de que as coisas podem acontecer no lugar onde eles estão”. Sublinha, por outro lado, a importância de este tipo de residências, que não existem muito em Portugal, partirem de um princípio de total liberdade. “É impossível a ideia de pedir a alguém que escreva não lhe dando total liberdade para o que possa acontecer. A presença do lugar no texto não tem de ser directa ou explícita, mas terá de vir de uma experiência desse lugar.” Aqui, “o território oferece-se para uma experiência que o escritor explora como entende”.

No seu caso, como está nas últimas semanas de escrita de um novo romance, explicou – e teve total abertura da organização para isso – que passaria muito tempo em casa a escrever. Por isso, estar cinco dias em Castelo Novo foi sobretudo um reencontro com uma paisagem de granito, familiar por uma ligação antiga à Serra da Estrela, e foi “a experiência de estar dentro de uma casa a escrever, com uma janela com o horizonte total, onde via até Espanha”. Dessa experiência resultou, para já, uma crónica (publicada domingo na revista 2 do PÚBLICO) – e o que mais resultará precisa ainda de “um tempo de sedimentação do lugar”.

Mas afinal, como disse de manhã Javier Reverte, “partir de viagem é já começar a escrever, embora ainda não tenhamos posto as letras”. A viagem começou aqui. 

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