O dia em que avisaram que vinha aí chuva

O telefone tocou ao princípio da tarde no gabinete do vereador.

— Bom dia, é da câmara?

— Sim, bom dia.

— Eu gostaria de falar com o senhor vereador.

— O senhor vereador não se encontra de momento. Quer deixar uma mensagem?

— É que ele pediu para avisar com 24 horas de antecedência.

— Avisar o quê?

— Estamos com uma depressão estacionária e aparentemente a situação vai piorar nas próximas horas.

— Lamento muito pelo que está a passar. Mas creio que deve ter havido algum engano. O senhor ligou para a câmara, não para um psiquiatra.

— Desculpe, não me fiz entender. Temos neste momento condições propícias à formação de sistemas convectivos de forte actividade, com possibilidade de ocorrência de processos de cavamento rápido.

— Como disse?

— Estou a falar da ciclogénese explosiva! Pediram-nos para avisar com antecedência.

— Ah, se é para isso, tem de contactar a Divisão de Espectáculos Pirotécnicos. Mas aviso desde já que fogos-de-artifício, agora, só na passagem do ano. Quer dizer, se o senhor presidente ganhar as primárias, quem sabe antes…

— Não é nada disso. Aqui é da meteorologia, minha senhora.

— Ah, da meteorologia! Vem bem a calhar: então o que me diz deste tempo? Esta chuva não pára, nem parece que ainda estamos em Setembro.

— É por isso que estou a ligar. A circulação atmosférica de sudoeste produzida por um sistema de baixas pressões está a conduzir a uma elevada instabilidade, com nuvens de grande desenvolvimento vertical, numa situação que deverá ser sentida sobretudo a sul do sistema Montejunto-Estrela.

— Sinto muito, mas não percebo nada do que o senhor diz.

— Cá entre nós, confesso que às vezes nem eu entendo. Mas, basicamente, vem aí uma forte precipitação.

— Vai chover a potes, é isso?

— É isso mesmo, tirou as palavras da minha boca. Vem aí uma carga de água daquelas, e estamos a avisar com um dia de antecedência que é para não nos acusarem de não dizer nada.

— Quem disse isso?

— O vereador, a senhora não se lembra? Foi à televisão e tudo. No dia seguinte, disse que não disse, negando a imagem de si próprio. Enfim…

— Não sei o que lhe diga. Mas, olhe, obrigadinha por avisar. Vou já contactar o vereador. Já agora, é grave?

— Sim, pode ser grave. Estamos a falar de níveis de precipitação concentrada que podem chegar aos 20 milímetros.

— Ai, ai, lá vem o senhor de novo com esta linguagem complicada.

— É verdade, tem razão. Vai chover para caraças em pouco tempo, é isso.

— E senhor sugere que façamos o quê?

— O melhor que têm a fazer é demolir as construções em leito de cheia, remover o alcatrão das avenidas que cobrem os vales, reabrir os rios e ribeiras que estão soterrados e repor a vegetação das suas margens.

— Em 24 horas? Vai ser complicado, temos algumas máquinas na oficina. E, com a transferência de competências para as juntas de freguesia, o senhor não imagina a confusão que anda por aqui. Cada um empurra o abacaxi para o outro.

— Bom, pediram-nos para avisar, o aviso está dado. Agora é convosco.

— Limpar as sarjetas não resolve o problema?

— Duvido. Ainda por cima, a chuva vai coincidir com a maré cheia.

— Estamos fritos…

— Fritos não, molhados.

— Vou ligar já para o vereador. Se não conseguirmos fazer aquilo tudo num dia, o senhor teria mais alguma sugestão?

— Sim, tenho: salve-se quem puder.

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