“Paguei o preço mais alto que se pode pagar por ter apoiado Lula”

José Sarney considera que as políticas sociais de Lula e Dilma Rousseff mudaram o Brasil e servem de contraste à austeridade “extrema” na Europa.

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Sarney acredita que o Brasil precisa do parlamentarismo e que o voto proporcional é uma grande fonte de problemas UESLEI MARCELINO/REUTERS

Após 60 anos de carreira política que o levaram a ocupar todos os cargos públicos do Brasil, incluindo a Presidência, José Sarney, 84 anos, retirou-se em Junho das disputas eleitorais. No Palácio dos Leões, sede do Governo do Estado do Maranhão que é dirigido pela filha Roseana, recebeu o PÚBLICO num final de tarde. Idolatrado pelos seus correligionários e odiado pela oposição, Sarney é uma das figuras centrais da política brasileira do último meio século e, para os seus adversários, o último exemplo das grandes oligarquias políticas do Nordeste

Quando deixou a presidência da República, em 1990, esperava que o Brasil seguisse o rumo que seguiu?
Eu acho que com a volta da democracia houve uma mudança fundamental no Brasil, que foi a preocupação com o social. O país durante todo o tempo teve a preocupação só com a economia. Até o Juscelino [Kubitcheck, presidente entre 1956 e 1961), que fez um governo extraordinário, que introduziu no Brasil uma mentalidade desenvolvimentista, não teve a preocupação social. Com a Constituição de 1988, pela primeira vez instituíram-se os direitos sociais que até então o Brasil não conhecia. Esse espírito foi cumprido e cada vez mais aumentou, de tal modo que passou a ser dominante na política brasileira. Isso fez com que completássemos 100 anos da República fazendo uma coisa extraordinária: enquanto duas palavras dominaram o mundo inteiro no século XX, a revolução e a revolta, nós conseguimos eleger um operário presidente. Foi um feito extraordinário. Fizemos isso com alguns percalços institucionais, mas fechámos os cem anos com um operário no poder. E para completar mais essas modificações, o Lula quando deixou a presidência botou uma mulher na presidência no Brasil. O meu grande legado foi ter deixado uma sociedade democrática, não só o Estado de Direito, as instituições, mas uma sociedade na qual o cidadão passou a ter direitos que nunca teve, como a universalização da saúde.

E que é que correu pior nestes anos?
Eu acho que nós percorremos um caminho sempre de avanços. Nunca chegámos a retroceder em nenhum momento. De tal maneira que tivemos um instante em que colocámos à prova as nossas instituições com o impeachment do Collor [Fernando Collor de Mello, presidente entre 1990 a 1992, quando foi destituído]. As instituições estavam tão consolidadas e fortes que atravessámos isso com os instrumentos da democracia. Os militares voltaram aos quartéis, e hoje nós temos a segunda democracia do mundo ocidental, com 160 milhões eleitores, com a maior liberdade e uma sociedade igualitária.

Como avalia os 12 anos de presidentes do PT-Partido dos Trabalhadores?
Acho que foram muito bons. Eles desenvolveram os programas sociais que eu tinha começado com maior densidade. Tivemos um período em que a economia mundial favoreceu e o Brasil aproveitou-se disso. Viu-se isso na diminuição da pobreza, com programas sociais como a Bolsa Família, assegurando uma renda mínima para todos os brasileiros.

Actualmente considera-se um homem mais à esquerda do que em 1960? O seu pensamento político não se enquadra na esquerda popular do PT…
Eu nunca tive um pensamento da esquerda popular do PT. Mas sempre tive um pensamento social-democrata. Todo o político nordestino tem preocupação pelo social. Quem primeiro colocou no debate nacional desenvolvimento sim com justiça social fui eu, no tempo do Juscelino. Mesmo no tempo dos militares nunca deixei de buscar um caminho democrático e que essa democracia fosse uma democracia social.

Que papel atribui a Fernando Henrique Cardoso (FHC) neste processo?
Fernando Henrique foi um bom presidente. Quando saímos do período da ditadura e consolidámos o Estado de Direito, o FHC foi o meu líder no Congresso Nacional, quando era Presidente da República. O Governo dele foi um bom governo. Prosseguiu com a consolidação das instituições, avançou com os programas sociais, voltámos a ter estabilidade na moeda com o Plano Real. Quando fiz o Plano Cruzado recusei a fórmula ortodoxa através da recessão, que é o grande erro que a Europa cometeu agora.

Mas a inflação no final do seu mandato estava acima dos 1000%...
Inflação com correcção monetária não é inflação sem correcção monetária. Os salários corrigiam todos os meses de acordo com a inflação. Se calcularmos a inflação em dólares ela não chega a ser tão alta, fica nos 14%. E nesse período tivemos a taxa de desemprego mais baixa da história, 2,39%, que é pleno emprego. O PIB até hoje não repetiu o crescimento que teve no meu tempo. Crescemos 100% no meu mandato.

Portanto, não subscreve as críticas que o PT faz aos mandatos de FHC.
O PT às vezes é injusto com FHC quando exacerba nas críticas. Eu não concordo com todas as críticas que faz ao FHC, embora eu também faça algumas críticas ao FHC.

Dilma está com mais dificuldades em eleger-se do que o esperado. O que impede a vitória fácil que há dois anos se antevia?
Essa eleição está a ser feita com a tragédia que matou Eduardo Campos. Isso mudou completamente o panorama eleitoral. Antes de acontecer essa tragédia, a Dilma se elegeria tranquilamente no primeiro turno. No Brasil parece haver um estigma, de sermos surpreendidos com isso. O Getúlio Vargas quando deu um tiro no peito também mudou o muro eleitoral. A morte do Tancredo [Tancredo Neves, eleito em 1985 ficou gravemente doente em vésperas da posse – é avô do candidato Aécio Neves], do general Costa e Silva [presidente entre 1967 e 1969, na Ditadura Militar], quando tivemos um golpe dentro do golpe… E agora essa tragédia, menos que a comoção pela morte do Eduardo Campos, ele ainda não tinha essa dimensão nacional capaz de provocar uma comoção da dimensão das outras que citei, mas fez a ressurreição da Marina, que vinha de umas eleições onde obteve 20 milhões de votos. Em torno dela agregaram-se os descontentes, os indignados.

Não há um cansaço do eleitorado em relação ao PT?
A democracia tem essa coisa salutar. O exercício longo do poder cria uma vontade de alternância.

Concorda que o governo económico levou o país para a estagnação e que o Brasil vive uma situação económica insustentável a prazo?
Não, o governo teve uma prioridade necessária, que foi a de fazer justiça social. Grande parte do que podia investir em infra-estrutura investiu na melhoria da qualidade de vida do povo. Diminuiu o número de miseráveis, diminuiu a fome, mas ao mesmo tempo criou problemas de atraso com os poucos recursos no que se refere a infra-estrutura. Um dos gargalos que a economia tem é o atraso nas infra-estruturas.

Dada a situação da economia os programas sociais são sustentáveis a prazo?
Sim, os programas sociais são irreversíveis. Tanto que não há nenhum candidato que diga que quer modificá-los.

Mas com o prolongamento de um quadro de recessão e de crescimento anémico é possível manter quase 80 milhões de pessoas a beneficiar desses programas?
As potencialidades do Brasil são muito grandes. Nós estamos a sofrer os efeitos da crise económica internacional. Não vamos ter nenhuma catástrofe pela frente.

Numa eventual segunda volta, e dando por adquirido que Dilma vai passar, quem gostava de ver como oponente dela? Aécio ou Marina Silva?
Eu tenho apoiado a Dilma e não tenho motivos para deixar de a apoiar. Apoio-a agora e apoio-a se chegarmos a um segundo turno, o Aécio tem qualidades mais fortes do que a Marina.

Porquê?
Eu conheço a Marina e sei que ela não tem as qualidades, o conhecimento dos problemas brasileiros que o Aécio tem.

Não está a dizer isso por Marina ser a principal adversária de Dilma?
Eu disse isso pela convivência que tive com Marina no Senado. A menos que ela tenha mudando muito, falta-lhe densidade. A Marina regressa de uma das alas radicais. Era de extremo radicalismo dentro do Senado.

Mas agora, em economia, está à direita do PT.
Em caso de alguma vez chegar ao poder, vamos ver se ela consegue essa mudança. Eu louvaria.

Os casos de corrupção que estão na actualidade vão ter influência nos resultados eleitorais, ou como no caso mensalão, que não impediu a reeleição de Lula em 2006, vão ter pouco impacte na votação?
A repetição permanente e a exploração dos casos de corrupção têm feito com que o povo não tenha muita convicção nas notícias, sem que sejam concretizadas. Mas os institutos de pesquisa dizem que o que as pessoas mais têm fixado nas notícias dos media é o caso da CPI da Petrobras. O caso Petrobras é um caso gravíssimo que tem de ser apurado e vai ter consequências muito fortes, desde que comprovadas as denúncias feitas pelo ex-director da Petrobras.

Mas isso não é um obstáculo intransponível para Dilma?
Esse não é o assunto mais grave que determina a posição eleitoral da Dilma, até porque aconteceu há pouco tempo.

Então qual é o caso mais grave para Dilma?
Ela não conseguiu a empatia que tinha o Lula com o povo. E ao mesmo tempo também não conseguiu [relacionar-se] com a classe política. O Brasil precisa de uma reforma política. Hoje é uma total desorganização em matéria de partidos políticos, de fidelidades políticas de ideias políticas. Esse voto proporcional é uma tragédia para o Brasil. Porque não deixa a formação de partidos, deforma a actividade política e leva à corrupção.

Já se fala de reforma política há anos. Por que não se faz?
Eu já falo disso há muitos anos. Eu acho que em breve temos um encontro marcado com um grande momento de impasse em que teremos de fazer uma reforma em profundidade. Precisamos do parlamentarismo, o voto distrital misto, porque não o podemos fazer puro, dada a dimensão do Brasil. No dia em que acabar o voto proporcional, metade dos problemas políticos estarão resolvidos. O voto uninominal só tem no Brasil. Aqui vota-se na pessoa e essa pessoa é que faz a legenda para o partido. O resultado disso é a multiplicação dos partidos. Temos 39 partidos no Brasil e 18 no Senado. Isso leva à ingovernabilidade. Para que os governos tenham condições de governabilidade, eles são obrigados a fazer todas as combinações espúrias e o Congresso torna-se alvo de acusações que são, em muitos casos, procedentes. As reformas não se fazem porquê? Os que devem fazer as reformas são beneficiários delas. O Congresso recusa, porque é fruto desse sistema terrível. É um círculo vicioso.

Há dois nomes do Maranhão envolvidos no caso da Petrobras. O ministro da Energia e a sua filha, Roseana Sarney [actual governadora do Estado do Maranhão].
Em relação à minha filha o que posso dizer é que ela nem conhece esse senhor, nunca viu – viu em reuniões que ele teve sobre a refinaria da Petrobras que está a ser construída no Maranhão. Quanto ao ministro, acho que se ele tivesse a dizer alguma coisa a dizer dele, já devia ter dito.

O que lhe parece? Paulo Roberto Costa não disse isso ou, se disse, inventou?
O Paulo Roberto, esse problema da delação premiada tem esse problema: alguém diz, a imprensa publica e depois não se concretiza. Deve ser apurado tudo. Mas um coisa que eu tenho a certeza: sobre a Roseana, o que ele disse é absolutamente mentiroso e infame.

Em Junho anunciou que se ia retirar da vida política. Deixa uma imagem pública bastante controversa. Sente-se injustiçado pela História?
Isso é uma coisa política. A partir do momento que apoiei Lula, paguei o preço mais alto que se pode pagar, que é o da minha imagem. A política brasileira é muito primária, não é feita de ideias, de respeito, é feita desse tipo de coisas subalternas. Não há um facto concreto que apontem à minha vida pública. Nunca ninguém me acusou de alguma coisa em 60 anos. Tanto que nos momentos de dificuldade sou chamado para ajudar o país. Não fui eu que pedi ao Lula; foi ele que foi a minha casa pedir o meu apoio. Eu achei que podia ajudá-lo e acho que ajudei. Isso fez com que a oposição julgasse que eu era o garante do governo Lula e desencadeou uma campanha.

Não se arrepende desse apoio.
Não, ajudei a que o Lula pudesse fazer um governo, ajudei a dar governabilidade a Lula em momentos difíceis e ele fez um bom governo. Ele é o maior líder popular que o Brasil tem. E mesmo em termos internacionais não há muitas figuras como ele.

Continua a ler os clássicos portugueses.
Continuo. Já estou numa fase de releitura, a começar pelo meu “amigo” Padro António Vieira. Quando comecei a querer escrever perguntei ao meu pai o que devia fazer. E ele disse: leia o Padre Vieira. Depois perguntei, e o segundo? Leia o Padre Vieira. E o terceiro? Leia o Padre Vieira. Foi uma profecia. Passei a vida lendo o Padre Vieira. Eu li muito os poetas como Mário Sá Carneiro, António Botto, Fernando Pessoa, os poetas novos na minha geração. Eu acho que a Agustina Bessa Luis é uma romancista extraordinária. Se tivesse que dar o Premio Nobel não teria dado ao Saramago, mas a Agustina.

É tido como um dos políticos brasileiros que mais relações teve com políticos portugueses. Mantém essa relação?
Eu sou o político brasileiro que mais amor teve a Portugal. Porque sempre tive uma ligação muito profunda com a literatura portuguesa, li tudo o que podia ler. Depois fiz amigos, entre os quais Mário Soares, meu amigo pelo qual eu tenho uma admiração muito grande, um político que teve uma grande importância para a Europa e para o mundo. A coragem que ele teve mudou a história da Europa.

Costuma falar com ele?
Continuo a escrever e a falar com ele. Acho que ele está certo com a crítica que ele faz ao extremo a que levaram a política de austeridade na Europa, que exige um sacrifício do povo e retrocessos políticos muito grandes. Tenho lido sobre o que ele tem dito. Falo com ele, com o [Jorge] Sampaio, com o Cavaco [Silva], um homem que tem uma boa formação, um homem com quem a gente pode conversar.

Diz que a política só tem uma porta de entrada, não tem uma porta de saída. Além da política, o que vai fazer?
Tenho o meu livro de memórias pronto para sair em Fevereiro. Sou o político com vida política mais longeva da história da República do Brasil, ocupei todos os cargos políticos, o livro é por isso grande. Tenho um outro livro de pequenas histórias de uma longa vida. E estou sempre pensando em escrever uma novela. Já comecei uma que se passa num sobradão [edifício grande] do Maranhão, o solar dos Tarquínios, e agora penso ter mais tempo para a desenvolver.

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