Nesta esquina havia livros

A Leitura foi vendida e se a procuramos na Internet ela aparece como Leitura Books & Living. Mudou de nome e, com isso, parece ter também mudado de sabor

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Eu não sabia nada, quando me pediram que fizesse um trabalho sobre o espaço de trabalho que o livreiro Fernando Fernandes estava prestes a abandonar, na Leitura, na Rua de Ceuta. Mas, quando me pediram o trabalho, os chefes lá me explicaram que a livraria era mítica durante os anos de ditadura, o local onde se podiam encomendar os livros proibidos e discuti-los, abertamente. E isso foi o suficiente para que eu partisse para a Leitura entusiasmada, com a certeza de que aquele era um artigo que valeria a pena escrever.

Não me recordo da conversa que tivemos, mas sei que foi longa. E que, de certeza, fiz muitas perguntas ingénuas, talvez parvas até, porque, como já disse, eu sabia muito pouco. Mas o livreiro foi paciente, respondeu a tudo, sem sobressaltos, e meses depois, quando foi publicado um livro que o homenageava, enviou-me um exemplar, com um cartão que guardo até hoje e que faz parte daquele repositório de pequenos orgulhos que escondemos na gaveta. Eu, pelo menos, escondo.

A Leitura nasceu em Setembro de 1968, com morada na Rua de Ceuta, pela mão de Fernando Fernandes e do editor José Carvalho Branco. Dez anos antes, o livreiro já tinha sido o fundador da Divulgação, que muitos recordam no tal livro de homenagem, editado em 1999, escassos meses depois de o rosto da Leitura ter anunciado que se reformava e que vendera a sua metade da livraria ao sócio. 

De todos os testemunhos que ajudam a perceber o que Fernando Fernandes significou para uma geração portuense, reproduzo apenas a frase do professor e escritor Albano Estrela, porque acho que ela diz tudo. “Evidentemente, ele tinha o que mais ninguém tinha e, coisa ainda mais espantosa, sabia o que não tinha e… o que eu precisava de ter!”

Tenho pena de não ter um livreiro como amigo. Adorava ter assim um amigo que, como escrevia Manuel António Pina, na mesma obra, me levasse “pela mão ao encontro das coisas essenciais”. Ainda que, confesso, goste de me perder na confusão das prateleiras cheias de livros, de pegar num ou noutro de que nunca ouvi falar, perder algum tempo com ele, e decidir comprá-lo, porque sim. Porque acho que talvez valha a pena.

Depois daquela conversa com Fernando Fernandes quando ele já estava de partida, voltei à Leitura. Gostava daquela livraria com duas entradas, uma pela Rua de Ceuta e outra pela Rua de José Falcão, dos pequenos degraus que ligavam uma sala à outra, de pegar em livros que ainda mantinham o preço com que haviam sido marcados no dia em que ali entraram, não importava quantos anos tinham passado. 

Em 2006, a Leitura foi vendida e hoje se a procuramos na Internet ela aparece identificada como Leitura Books & Living. Mudou de nome e, com isso, parece ter também mudado de sabor. Ou talvez não, se calhar continua a ser a mesma. Se calhar, ainda ninguém nos diz um “não tenho”, quando lhe perguntamos por um livro, sem esperança de que o venham a conseguir. Já não ia à Leitura há algum tempo e decidi passar por lá.

A Leitura já não tem duas entradas. Agora, na esquina da Rua de Ceuta (que sempre foi a morada oficial da livraria) com a de José Falcão, há um cabeleireiro. A Leitura perdeu a origem, ficou apenas com a parte — maior, é certo — do seu acrescento em José Falcão. Entrei, procurei um livro e não o encontrei. Disseram-me que não havia e saí desconsolada. Eu gosto de livrarias e não posso deixar de continuar a gostar da Leitura. Mas senti falta de quando naquela esquina se vendiam livros. E muita falta de sentir que estava na casa de um dos maiores livreiros do país. 
 

 

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