As leis da física do realismo mágico

Foto
NUNO FIGUEIRA

Foi a romances como este Pedro Páramo, agora adaptado à cena pelo Teatro Meridional, que os escritores do que viria a ser conhecido como realismo mágico vieram beber inspiração. A história passa-se numa aldeia fantasma, cercana à fazenda da Meia-lua, num território do México oitocentista dominado por quatro gerações de Páramos. Juan Preciado vem em busca do pai, Dom Pedro, mas encontra apenas morte. É de lugares algures no túmulo que nos é contada a história. A obra mistura magia e realidade, mortos e vivos convivendo entre si. Pesadelos, delírios, memórias, vozes do além, os fragmentos não se distinguem claramente, nem se separam bem dos pensamentos do leitor, tal é o poder de sugestão da obra de Juan Rulfo. Os factos narrados misturam-se nos sonhos de quem os lê.

As razões para morrer e viver também não parecem ser de ordem material e tangível, mas espiritual e fabulosa, como se os sentimentos fossem a pedra de toque de tudo. Juan morre de desgosto? Susana morre de desespero? Morremos com eles. Os actos cometidos por Pedro Páramo são tão absolutos que contra ele só restam palavras e emoções. Os relatos enredados no curto romance parecem constituir uma espécie de justiça poética, a forma de vingança possível, contra o autoritarismo de Dom Pedro. A morte de Páramo não chega a ser narrada em directo e deve-se mais à desistência do próprio do que à coragem, bebida de um trago, de Abundio, outro filho do senhor da terra. O realismo é mágico não só pelo que narra, mas pelo modo como o livro domina a realidade através da efabulação.

No espectáculo, as personagens arrastam os pés pelo chão, fazendo soar os ladrilhos nas botas e levantando um ou outro. Os ladrilhos que sobraram, ao fim destes anos todos em que estas personagens, e quase se diria os actores, vaguearam por aquele lugar, formam uma cruz. A habilidade de Marta Carreiras para compor espaços que já têm uma história dá aos espetáculos do Meridional um brilho, uma aura, um charme inconfundíveis, que ajudam a compor a ficção e facilitam o mergulho num universo paralelo, onde a física tem regras próprias. E bem precisa, porque metade destas personagens são almas penadas que conversam entre si e com os vivos, e a sequência cronológica dos acontecimentos é baralhada pelo autor, para simular um ponto de vista sobre os factos que vem do miradouro da imortalidade. A atmosfera criada pelos actores, por um lado, e pela luz, o som e o cenário, por outro, procura reconstituir uma sensibilidade para lá do tempo e do espaço, uma melancolia em cena, que convoque os espectadores para a comunhão teatral. Os sentimentos que dominam o espectáculo são a mágoa, a solidão, o desespero. O tom é de luto. Esta é a estratégia para dominar o livro e, indirectamente, a realidade a que ele alude, fazendo o público recordar uma história que, na verdade, apenas agora está a conhecer. Os actores, abro um parêntesis, são nisto formidáveis, e dignos do adjectivo em desuso, porque, como músicos cujo instrumento é o corpo e a voz, interpretam esta cantata com imaginação e fantasia, fazendo do todo um longo feitiço.

Aos 90 minutos do espetáculo, acontece algo realmente surpreendente: os actores denunciam o jogo de entrar e sair da personagem, que até aí tinha sido feito o mais subtilmente possível. Ivo Canelas diz a Rui M. Silva que faça outra personagem; Nuria Mencia pede ao sonoplasta que mude a música para a cena seguinte; e, culminando este jogo, Natália Luiza enverga uma casaca para vir à frente ler, emotiva, a partir do livro, o fragmento em que a história de Pedro Páramo e da aldeia fantasma se cruza com a história do México dos nacionalistas, bandoleiros e revolucionários. A nostalgia e a saudade são enfiadas no saco. A partir dali, todo o espectáculo parece revidar, como se o sentido para contar aquela história tivesse sido reencontrado. Fica a hipótese: se a entrada e a saída de personagens tivesse sido mais explícita desde o início, separando ainda mais o que é pessoal e o que é público, mas apresentando ambos, e mostrando a todos que estávamos apenas num teatro, falando de um livro que fala de um México que fala do nosso lugar, em Xabregas, Lisboa, Portugal, talvez fosse mais teatral do que fingir que estamos todos num túmulo, comungando, com Rulfo e a América Latina, um destino funesto.

Sugerir correcção
Comentar