Gestos que são sopros de vida

Nos Limites é mais do que uma coreografia. É um desejo intenso de reescrita da presença do corpo a partir do que se perdeu. Apresentação única no sábado, 27 Setembro, no Festival Materiais Diversos

Foto
CHRISTOPHE RAYNAUD DE LAGE/ WIKISPECTACLE

Talvez aquilo que exista de mais surpreendente em Nos Limites, do coreógrafo tunisino Radhouane El Medded, seja o modo como os corpos de Mathias Pilet e Alexandre Fournier nos escapam a qualquer descrição finita.

O movimento que executam não é sequer passível de ser entendido como pertencendo ao campo estrito da coreografia pelo simples facto de que a entrega na qual se expõe é, ela mesma, feita de traços e lastros que vêm, quando os conseguimos identificar, da dança-teatro e do novo circo. Mas é quando abandonamos o desejo de interpretar os gestos que o movimento nos surge em todo o seu esplendor e  intensidade: pelo modo como se vai relevando íntimo, secreto.

São dois corpos em palco, num espaço reduzido, que parece apenas pertencer à distância que vai entre um e o outro. É um ritual para o qual somos convocados sem sabermos se estamos a assistir a algo que, de tão íntimo, nos deveria ser interdito.

São dois homens, num espaço que tanto é um ringue como um leito, que tanto expande a inocência e a fragilidade do encontro como o metaforiza: encontro entre duas forças oponentes.

Explica o coreógrafo que Nos Limites “é uma história de pulsões de vida apesar das falhas e dos desaparecimentos; é também a história de uma juventude confrontada com a ausência, mas sobretudo entregue à sua capacidade de resistir, de fazer uso da sua técnica para reencontrar a energia e continuar o seu processo de criação”. É, ao mesmo tempo, um exercício de exposição sobre a construção de uma identidade invidividual, social e artística. É, por isso, mais do que uma coreografia, é um desafio.

Começar de novo
A partir de uma ideia de Fabrice Champion, equilibrista que viria a morrer em 2011 na sequência de um ritual xamanistico, após tentar recuperar do acidente que o havia deixado numa cadeira de rodas, Radhouane El Medded constrói um espectaculo sobre a perda e a necessidade de a partir dela começar de novo.
Os corpos de Mathias Pilet e Alexandre Fournier, que Champion encontrou após os ter visto num dos exercícios de Ecole Nationale des Arts du Cirque de Rosny-sous-Bois, são o que resta dessa memória, duas presenças que a revista Telérama descrevia como testemunhas de uma história e que, pela graça e subtileza das suas interpretações, transformavam Nos Limites num espectáculo que “regressa da morte para testemunhar, da mais impressiva das formas, a sua ausência”.

Num filme de Olivier Meyrou, Parades, estreado em 2013, o que vemos é o trabalho desenvolvido por Champion, acompanhado por Mathias Pilet e Alexandre Fournier, num esforço de adaptação e reconstrução de uma presença que se recusa a aceitar a finitude dos seus limites. O movimento surge não como uma utopia mas como o desejo concreto de ultrapassagem das dificuldades, como se através dele se quisesse chegar a um outro estado emocional. O movimento é assim, não um fim em si mesmo, mas um meio de construir uma identidade. Esta outra relação que se vai construindo é feita de uma intensa pesquisa sobre o potencial da perda, sobre as hipóteses de transformação do efémero em perpétuo e sobre o imenso desejo de vida que o corpo vivo representa.

O trabalho que haveria de estar na origem de Nos Limites é também de aprendizagem: o movimento enquanto lugar de encontro. No palco iluminado a um branco clínico o que vemos é a entrega de dois bailarinos-acrobatas que desafiam os limites, um desenho de movimento que abandona as fronteiras possíveis para se construir no terreno ambicioso da utopia.

O que havia sido iniciado por Champion com Pilet e Fournier resiste como memória viva de um gesto de reconquista da liberdade do corpo, operando sobre a memória como um agente que a reescreve. O que deveria ser um modo de falar da deficiência e de como os obstáculos podem ser desafios ultrapassáveis, foi, depois da morte de Champion, transformado numa longa viagem emocional pelos desafios do movimento ausente. No programa escreve-se: “sob o olhar cúmplice de Radhouane El Meddeb, os dois jovens intérpretes evocam a ausência com pudor, delicadeza mas também com uma entusiasmante energia, graças ao equilíbrio entre os movimentos acrobáticos e os movimentos coreográficos”.

Porque aquilo que fazem é mais do que um gesto de reconstrução emocional, Nos Limites escapa a um exibicionismo virtuoso que poderia transformar a coreografia num momento expressivo vazio. O segredo pode bem estar na história subterranea que nunca nos é verdadeiramente revelada, ou na nossa capacidade de maravilhamento que, a cada momento, é desafiada.

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