Gestos que são sopros de vida
Nos Limites é mais do que uma coreografia. É um desejo intenso de reescrita da presença do corpo a partir do que se perdeu. Apresentação única no sábado, 27 Setembro, no Festival Materiais Diversos
Talvez aquilo que exista de mais surpreendente em Nos Limites, do coreógrafo tunisino Radhouane El Medded, seja o modo como os corpos de Mathias Pilet e Alexandre Fournier nos escapam a qualquer descrição finita.
O movimento que executam não é sequer passível de ser entendido como pertencendo ao campo estrito da coreografia pelo simples facto de que a entrega na qual se expõe é, ela mesma, feita de traços e lastros que vêm, quando os conseguimos identificar, da dança-teatro e do novo circo. Mas é quando abandonamos o desejo de interpretar os gestos que o movimento nos surge em todo o seu esplendor e intensidade: pelo modo como se vai relevando íntimo, secreto.
São dois corpos em palco, num espaço reduzido, que parece apenas pertencer à distância que vai entre um e o outro. É um ritual para o qual somos convocados sem sabermos se estamos a assistir a algo que, de tão íntimo, nos deveria ser interdito.
São dois homens, num espaço que tanto é um ringue como um leito, que tanto expande a inocência e a fragilidade do encontro como o metaforiza: encontro entre duas forças oponentes.
Explica o coreógrafo que Nos Limites “é uma história de pulsões de vida apesar das falhas e dos desaparecimentos; é também a história de uma juventude confrontada com a ausência, mas sobretudo entregue à sua capacidade de resistir, de fazer uso da sua técnica para reencontrar a energia e continuar o seu processo de criação”. É, ao mesmo tempo, um exercício de exposição sobre a construção de uma identidade invidividual, social e artística. É, por isso, mais do que uma coreografia, é um desafio.
Começar de novo
A partir de uma ideia de Fabrice Champion, equilibrista que viria a morrer em 2011 na sequência de um ritual xamanistico, após tentar recuperar do acidente que o havia deixado numa cadeira de rodas, Radhouane El Medded constrói um espectaculo sobre a perda e a necessidade de a partir dela começar de novo.
Os corpos de Mathias Pilet e Alexandre Fournier, que Champion encontrou após os ter visto num dos exercícios de Ecole Nationale des Arts du Cirque de Rosny-sous-Bois, são o que resta dessa memória, duas presenças que a revista Telérama descrevia como testemunhas de uma história e que, pela graça e subtileza das suas interpretações, transformavam Nos Limites num espectáculo que “regressa da morte para testemunhar, da mais impressiva das formas, a sua ausência”.
Num filme de Olivier Meyrou, Parades, estreado em 2013, o que vemos é o trabalho desenvolvido por Champion, acompanhado por Mathias Pilet e Alexandre Fournier, num esforço de adaptação e reconstrução de uma presença que se recusa a aceitar a finitude dos seus limites. O movimento surge não como uma utopia mas como o desejo concreto de ultrapassagem das dificuldades, como se através dele se quisesse chegar a um outro estado emocional. O movimento é assim, não um fim em si mesmo, mas um meio de construir uma identidade. Esta outra relação que se vai construindo é feita de uma intensa pesquisa sobre o potencial da perda, sobre as hipóteses de transformação do efémero em perpétuo e sobre o imenso desejo de vida que o corpo vivo representa.
O trabalho que haveria de estar na origem de Nos Limites é também de aprendizagem: o movimento enquanto lugar de encontro. No palco iluminado a um branco clínico o que vemos é a entrega de dois bailarinos-acrobatas que desafiam os limites, um desenho de movimento que abandona as fronteiras possíveis para se construir no terreno ambicioso da utopia.
O que havia sido iniciado por Champion com Pilet e Fournier resiste como memória viva de um gesto de reconquista da liberdade do corpo, operando sobre a memória como um agente que a reescreve. O que deveria ser um modo de falar da deficiência e de como os obstáculos podem ser desafios ultrapassáveis, foi, depois da morte de Champion, transformado numa longa viagem emocional pelos desafios do movimento ausente. No programa escreve-se: “sob o olhar cúmplice de Radhouane El Meddeb, os dois jovens intérpretes evocam a ausência com pudor, delicadeza mas também com uma entusiasmante energia, graças ao equilíbrio entre os movimentos acrobáticos e os movimentos coreográficos”.
Porque aquilo que fazem é mais do que um gesto de reconstrução emocional, Nos Limites escapa a um exibicionismo virtuoso que poderia transformar a coreografia num momento expressivo vazio. O segredo pode bem estar na história subterranea que nunca nos é verdadeiramente revelada, ou na nossa capacidade de maravilhamento que, a cada momento, é desafiada.