Pode o combate ao insucesso escolar justificar a separação de alunos por etnia?

O caso da turma de meninos ciganos, em Tomar, é de duvidosa constitucionalidade, diz o alto-comissário para as Migrações. Fomos conhecer outros. Há quem considere que nunca é legítimo separar alunos e quem fale de experiências bem sucedidas. “Um dilema”, diz Maria do Rosário Carneiro.

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“É bastante frequente as escolas separarem os meninos por etnia", diz investigadora Nelson Garrido

Nos últimos anos, a polémica tem envolvido sobretudo crianças ciganas. E a mais recente é da semana passada — tal como o PÚBLICO noticiou, a Escola Básica do 1.º ciclo dos Templários, em Tomar, constituiu uma turma com 14 meninos e meninas, de etnia cigana, entre os 7 e os 14 anos. As famílias revoltaram-se. Mas a pergunta “é ou não legítimo criar turmas com alunos de uma única etnia?” não parece ter resposta fácil. Pedro Calado, alto-comissário para as Migrações, que ainda aguarda explicações da escola, diz que a separação, tal com ela aconteceu em Tomar, é, “à luz da Constituição portuguesa, francamente questionável”. Contudo, um relatório da comissão de Ética do Parlamento, de 2009, dava conta de que alguns estabelecimentos que ensaiaram experiências do género conseguiram “uma redução drástica do abandono escolar”.

No que ficamos? Maria do Rosário Carneiro, que redigiu o relatório do Parlamento sobre os portugueses ciganos, que resultou de dezenas de audições e visitas ao terreno, fala de “um dilema”. Diz que tudo o que passe por separar alunos por etnia corre o risco de ser inconstitucional se não levar o carimbo de “experiência transitória” e não for muito bem fundamentado. Mais: “Não pode haver uma turma destas se ela não for excelente em recursos, em acompanhamento, em avaliação, em tudo! A discriminação positiva tem de ser sempre de excelência!”

Mas, até isto, admite, “é controverso”. Cada caso, é um caso.

Pedro Calado considera que em “situações extremas”, quando tudo o resto falhou para evitar o abandono ou o insucesso repetido, a separação de alunos pode aceitar-se. Também estabelece condições. Todas as partes estarem de acordo é uma delas, incluindo as famílias. Mas há mais. “Não podem ser soluções que se perpetuam no tempo, têm de ser temporárias e o objectivo tem de ser a integração do grupo minoritário [os alunos ciganos] no grupo maioritário.”

O alto-comissário também defende que a separação não é admissível se estamos a falar de crianças que frequentam o ensino regular. Já turmas de programas alternativos, para grupos específicos de jovens adultos que dificilmente voltariam à escola de outro modo, são aceitáveis, diz, desde que devidamente sustentado o projecto. “Há boas práticas”, garante.

O PÚBLICO procurou algumas escolas com projectos específicos para alunos ciganos (ver lista de exemplos em baixo). Os dirigentes escolares enaltecem-lhes as virtudes. Mas há quem os critique. “É bastante frequente as escolas separarem os meninos por etnia, ou só os repentes ou só os que perturbam mais”, afirma Luiza Cortesão, professora emérita da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, especialista em problemáticas interculturais. “Mas é preciso abolir isto, porque é uma discriminação”, defende. “Agora, também é preciso dar formação aos professores para atenderem à diversidade.”

Insucesso crónico
A Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (publicada em 2013) prevê a produção anual de um relatório sobre a situação escolar dos alunos de etnia cigana. Continua a estudar-se a forma legal de obter esta informação.

Ainda assim, sabe-se que o insucesso destas crianças é elevado por factores vários, apontados no relatório do Parlamento, como os baixos níveis de escolaridade e a itinerância das famílias. Sobre as experiências no terreno de organização de turmas étnicas, com argumentos vários, como “a necessidade de retirar as crianças ciganas, mais velhas, das turmas em que a idade média é muito mais baixa”, conclui o documento: em regra, esta separação de alunos é acompanhada “por horários desfasados de recreios e de refeições, reduzindo-se assim a integração ao espaço físico da escola”.

Nalguns casos, o resultado foi a “redução drástica do abandono, do absentismo, da conflitualidade, progressivo sucesso escolar, alguma integração na restante comunidade escolar.” Muitos pais de etnia cigana sentem que os filhos estão mais protegidos assim. Outros contestam a separação. Maria do Rosário Carneiro nota que se limitou a registar o que foi observado.

A António Pinto Nunes, membro do Grupo Consultivo para a Integração das Comunidades Ciganas, que funciona junto do Alto Comissariado, estes argumentos não convencem. É contra a separação. E acusa a escola de Tomar de discriminar os ciganos. Diz que não é caso único. “Os senhores, por vezes, para terem menos trabalho e adquirirem popularidade tomam atitudes racistas — porque a população não gosta dos ciganos.”

Ministério pede esclarecimentos
Pedro Calado — que não acredita que tenha havido um intuito discriminatório na escola de Tomar mas que também acha que esta não vive uma “situação excepcional” que justifique a separação dos alunos — aguarda pelos argumentos do director do agrupamento (ao PÚBLICO, Carlos Ribeiro disse, na sexta-feira, que “a ideia é apostar” nestes alunos).

O Ministério da Educação e Ciência faz saber, por seu lado, que já pediu mais informação à escola. “Caso seja necessário, adoptará os procedimentos adequados”, comunicou nesta quarta-feira, em resposta ao PÚBLICO.

Para já, o alto-comissário diz: “Se uma das partes não está satisfeita, como é o caso, ainda temos de ser mais críticos.” Para além do mais, em Tomar, estamos a falar de crianças que estão em diferentes níveis  — 1.º, 3.º, 4.º anos —, todas juntas, no ensino regular. E há princípios que não se podem perder de vista, insiste: as comunidades “têm direito à sua identidade cultural” mas “a sociedade maioritária tem o dever de promover a mistura cultural”. Ainda assim sublinha: “As queixas de discriminação são pontuais. Não temos um problema dramático de discriminação.”

Mas Luiza Cortesão acha que temos alguns problemas. E se não há mais queixas, acredita, é porque a discriminação está tão entranhada que as pessoas não reivindicam mais igualdade. Recorda, a título de exemplo, o caso de uma escola que acompanhou onde havia uma turma só de alunos ciganos que tinha um horário distinto dos outros para fazer as refeições no refeitório. “A escola dizia que assim se sentiam mais à vontade. Não houve um único pai desses alunos que protestasse.”
 
Escolas com turmas só de alunos ciganos, ou quase

Estarreja
É uma novidade deste ano lectivo na Escola Básica Padre Donaciano de Abreu Freire, que pertence ao agrupamento de escolas de Estarreja. Foram criadas duas turmas, especialmente pequenas, “para alunos com um número elevado de retenções”, explica Emídio Ferro, o coordenador da escola. “Isto não é para resolver um problema de ciganos, é para resolver um problema de um grupo que tem grandes dificuldades escolares, em vez de os colocar numa turma com 25 alunos”, que é o tamanho normal, sublinha o professor.

Uma das turmas concentra alunos de diferentes anos do 1.º ciclo do ensino básico, todos de etnia cigana e todos com dois ou três chumbos no currículo. São 12 meninos com 10, 11 anos. A segunda turma tem alunos do 2.º ciclo, metade ciganos e metade não ciganos, prossegue Emídio Ferro. A dimensão dos grupos permite que crianças e jovens tenham um acompanhamento mais personalizado, garante.

Outras especificidades? A escola fornece materiais escolares — que estes alunos nem sempre têm — e “não há uma tão grande preocupação em passar trabalhos para casa”.

O professor tem o cuidado de sublinhar que “o critério [para integrar estes grupos] não foi ser de etnia cigana, foi ter um absentismo elevado, insucesso, falta de pontualidade”. Aconteceu que na turma do 1.º ciclo todos os que cumpriam esses requisitos eram ciganos.

Questionado sobre se as famílias foram consultadas, diz que no caso do grupo do 1º ciclo tal não foi possível porque muitos pais só apareceram quando o ano lectivo arrancou. Mas, nota, foi-lhes explicado que havia abertura para mudar os meninos se tal fosse pedido. Não foi. Pelo contrário: o pai de um menino de etnia cigana que estava noutra turma onde essa etnia é minoritária pediu uma mudança para a classe que só tem alunos ciganos.

“Dissemos-lhe que não era adequado, não cumpria os requisitos de ter muitas retenções.”

As aulas começaram há apenas duas semanas, mas Emídio Ferro diz que há alguns sinais positivos: menos agressividade e alunos mais pontuais. É certo que também foi feito um trabalho com as famílias — que, diz, estão mais sensibilizadas para a ideia de que se os filhos não forem à escola podem perder subsídios que eventualmente recebam.

Sobral da Adiça
Sobral da Adiça é uma pequena freguesia de mil habitantes, em Moura. Em 2010, nasceu ali uma turma PIEF — uma turma integrada no Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF), que permite planos de formação próprios para jovens com mais de 15 anos em situação de abandono, com uma componente de educação, outra de formação, outra mais cívica. São uma espécie de último recurso. O grupo tinha uma particularidade: os oito alunos que o constituiam eram de etnia cigana. Actualmente, são nove alunos, rapazes e raparigas, sete dos quais de etnia cigana, diz Manuel Rodrigues de Freitas, director do Agrupamento de Escolas de Moura.

Muitos não fariam os 20 km necessários até à escola mais próxima para continuarem os estudos, garante. Têm aulas numa sala cedida pela junta de freguesia porque se entendeu que isso era mais adequado do que usar a escola do 1.º ciclo local. “Têm 16, 17 anos e um currículo adaptado às suas necessidades. Os conteúdos são acessíveis e todos passam de ano. Alguns são casados, algumas já são mães, mas continuam a ir às aulas. Temos alunos que estão a fazer o 2.º ciclo e outros que estão a fazer o 3.º.” De outro modo, está convicto, não estariam.

Darque
A notícia estalou nos jornais em 2009: tinha sido criada uma turma só com alunos ciganos, num monobloco, na escola EB1 de Lagoa Negra, em Barqueiros, Barcelos. O Observatório dos Direitos Humanos, entidade que resulta de uma parceria de diversas organizações como a SOS Racismo, arrasaria a medida. Ela só acentuaria a “exclusão e as desigualdades sociais”.

Em pleno debate mediático, o então director do agrupamento de escolas de Darque (Viana do Castelo), Luís Braga, falava ao Diário de Notícias. Tinha uma turma de 10 alunos, entre os 12 e os 15 anos, oito dos quais ciganos, que tinham aulas à parte. Não achava que estivesse a fazer mal. Pelo contrário. “Estas turmas, chamadas ‘de abandono’, visam resolver o problema da alternativa e é na alternativa que as pessoas não estão a pensar: que aqueles miúdos nem sequer iam à escola”, explicou na altura. A turma estava integrada no PIEF.

Passados estes anos, o que se passa em Darque? (sendo certo que na escola de Lagoa Negra a turma de alunos ciganos foi extinta no ano lectivo seguinte) Hoje a escola está integrada no mega-agrupamento de Escolas do Monte da Ola. Conceição Fernandes, directora do mega-agrupamento, diz que até ao ano passado continuava a haver “um PIEF para rapazes, outro PIEF para raparigas”, maioritariamente de alunos ciganos. A preocupação em separar rapazes e raparigas tinha a ver, precisamnete, com o público de etnia cigana: “Estamos a falar de jovens que já têm 15, 16, 17 anos... e a mistura já não é aceite na comunidade.” Este ano, contudo, só uma turma PIEF recebeu aprovação ministerial. É cedo, diz, para perceber se há desistências por causa disso.

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