A crise das democracias e a reforma dos sistemas eleitorais

As reformas institucionais podem ajudar a melhorar o funcionamento dos sistemas políticos, democratizando-os e melhorando o seu desempenho. Mas, por outro lado, algumas também podem ser perniciosas.

As reformas políticas regressaram à ordem do dia. Primeiro, foi o secretário-geral do PS que, acossado por António Costa, tirou da cartola uma medida, «as primárias abertas», a que se tinha oposto no passado recente e, sobretudo, para um cargo/eleição que não só não tem substrato constitucional como, caso seja continuada pelo PS e mimetizada pelo PSD, irá reforçar ainda mais os poderes do premier num sistema que Adriano Moreira classificou de «presidencialismo do primeiro-ministro». Ou seja, uma boa ideia, abrir os partidos à sociedade sintonizando-os mais com ela, mas aplicada por motivos táticos e para o cargo errado.

Segundo, mais recentemente Seguro avançou com uma «proposta de deliberação» à AR onde avulta a expressão da vontade de reformar o sistema eleitoral, embora sem definir os contornos da mesma, exceto em dois pontos: a provável adoção do voto preferencial (permitindo ao eleitores escolher, simultaneamente, o seu deputado e o partido da sua preferência) e a redução do número de deputados (de 230 para 181). Também aqui os motivos são puramente táticos e, mais importantes, a democracia interna do partido e da bancada parlamentar (GP) foram completamente ignoradas na feitura e apresentação da proposta. Um desastre para quem diz que quer reformar o sistema político, democratizando-o e tornando mais responsável e transparente. Pelo meio, um conjunto de notáveis veio propor a reforma do sistema eleitoral no «manifesto por uma democracia de qualidade». Mas afinal podem as reformas institucionais ajudar a resolver a crise que as democracias contemporâneas atualmente atravessam? E, se sim, em que medida?

Por um lado, é claro que as reformas institucionais podem ajudar a melhorar o funcionamento dos sistemas políticos, democratizando-os e melhorando o seu desempenho. Mas, por outro lado, algumas reformas também podem ser perniciosas: por exemplo, comprimindo a componente democrática do regime e reforçando a sua componente mais liberal (ver Ignacio Sanchez-Cuenca, Mas Democracia, Menos Liberalismo, 2010). Mesmo na perspetiva mais otimista, é preciso relativizar as possibilidades de melhoria, nomeadamente porque há uma multiplicidade de fatores por detrás da crise das democracias e tal crise atinge países com instituições políticas muito diversas. Dois exemplos: a crise bate forte na Grécia apesar de usar o voto preferencial; a crise económica, a erosão do apoio popular aos políticos e aos partidos do centro são bastante fortes em França apesar do seu sistema maioritário a duas voltas em círculos uninominais (embora o regime de duas voltas, e o estímulo à política de alianças que lhe está subjacente, impeça uma maior expressão parlamentar da direita radical, enquanto não tiver aliados…). Mais importante, há vários fatores de índole política que estão por detrás da crise das democracias. No seu derradeiro livro, o eminentíssimo politólogo Peter Mair faz uma resenha das causas da crise das democracias (Ruling the void – The Hollowing of Western Democracy, 2013). Primeiro, a desvalorização da política. Esta traduz-se quer no crescimento e enorme poder de entidades não eleitas (bancos centrais independentes, entidades reguladoras, juízes/tribunais, etc.), quer nos políticos que se gostam de apresentar como «não políticos» (Tony Blair, Cavaco Silva, etc.) cavalgando e alimentando o populismo antipolítica. Segundo, o declínio da polarização ideológica, logo o enfraquecimento de dois esteios essenciais das democracias: a existência de alternativas e a clareza das mesmas. Tal deve-se não só a uma crescente moderação dos partidos radicais, mas também, em vários países, ao aumento das grandes coligações que juntam a esquerda e a direita (ou seja, juntando os partidos que deviam protagonizar alternativas e não viver em colusão). Terceiro, a globalização e a europeização exercem uma pressão fundamental sobre os sistemas políticos nacionais, enfraquecendo-os, em larga medida devido à liberalização dos movimentos de capitais. Ou seja, se «os paraísos do capital» (mínimos fiscais e sociais, desregulação laboral, etc.) não são instaurados num determinado país, rapidamente os capitais se transferem para onde efetivamente existam, estimulando a «corrida para o fundo». O economista de Harvard, Daniel Rodrik, considera mesmo incompatível o trinómio da globalização atual com a democracia e o Estado nacional: The Globalization Paradox. Democracy and the Future of the World Economy, 2012. No caso da europeização, a despolitização e o esvaziamento das alternativas passa pela pressão para a convergência nas políticas (os tratados orçamentais, os pactos de estabilidade, as regras de ouro, etc.), reduzindo o espaço de competição, e pela captura dos instrumentos das políticas (várias medidas tradicionais da política democrática, nomeadamente as que passam pela intervenção do Estado na economia, estão hoje vedadas para proteger as «liberdades dos mercados»). Mas como é que tudo isso se liga à reforma dos sistemas políticos? Bom, desde logo e acima de tudo para relativizar o alcance que uma reforma eleitoral, mesmo que profunda e feita no sentido de reforçar a componente democrática do regime, poderá ter. Em todo o caso, passemos a ela.

Comecemos pela redução de 49 deputados. É uma cedência ao populismo e à antipolítica. Primeiro, porque vários e sucessivos estudos, nomeadamente o que coordenei para o grupo parlamentar do PS (Para uma melhoria da representação política – A reforma do sistema eleitoral, 2008), demonstram que, comparando o Parlamento português com os congéneres europeus, Portugal tem um rácio entre eleitores e deputados semelhante aos países de dimensão equivalente ao nosso. Mais: a partir de idênticas comparações, Paulo Morais estimou estatisticamente que a existir algum ajustamento deveria ser, no máximo, o de reduzir cerca de 10 deputados (Eleições, nº 5, 1999). Uma atitude exemplar de Seguro teria sido a de propor-se reduzir substancialmente as subvenções aos partidos e campanhas eleitorais (poupando igual montante ao da redução de 49 deputados), sem embarcar na deriva antipolítica e impedindo eventuais efeitos perversos: reduzir a proporcionalidade; beliscar a representação territorial, já muito desigual; elevar o limiar de entrada no parlamento, dificultando a renovação partidária do mesmo; dificultar a vida aos pequenos partidos pois que, mesmo que a proporcionalidade não fosse comprimida, os seus GPs seriam de tal modo reduzidos que mal poderiam participar nas várias comissões parlamentares. Por tudo isso, é «uma declaração de guerra» aos pequenos partidos (de esquerda) e um namoro descarado ao PSD. Mais: é um clamoroso erro tático e estratégico, pois o PS fica sem nenhum trunfo para negociar contrapartidas numa eventual reforma.

Teoricamente, é possível reduzir o número de deputados e não comprimir a proporcionalidade, mas o caminho é estreitíssimo. Mais: só os ingénuos e/ou incautos acreditam que os grandes partidos desperdiçariam uma tão boa oportunidade para incrementarem os seus ganhos na secretaria… Manter a proporcionalidade é crucial porque nem o sistema eleitoral é excessivamente proporcional, nem o sistema partidário é fragmentado, e a proporcionalidade é um estímulo à participação dos cidadãos e à diferenciação ideológica dos partidos. Portugal precisa, isso sim, de medidas que estimulem a governabilidade sem comprimir a proporcionalidade (como a moção de censura construtiva; «prémios» à cooperação entre partidos). Por exemplo, as «listas aparentadas» (os partidos declaram-se coligados sem fazerem listas conjuntas e a transformação de votos em mandatos é feita para o conjunto dos «aparentados» incrementando assim os seus lugares no parlamento, face a uma contagem individualizada), caso se adotasse um sistema como o que propus em 2008, ou duas voltas na componente uninominal (à francesa), caso se adotasse um sistema misto (à alemã). Tal seria crucial para trazer a esquerda radical para dentro do sistema de governo, acabar com a colusão PS-PSD e estimular a clareza das alternativas e a participação popular.

Finalmente, a questão da escolha dos deputados.  O voto preferencial, que só é exequível e efetivo em pequenos círculos, permite que os eleitores escolham o partido que preferem e, dentro desse, escolham também os candidatos a deputados que entendem melhor os servir. Nos círculos uninominais, o eleitor é forçado a escolher: ou o partido ou o candidato. Ou seja, um eleitor descontente com determinado candidato do «seu partido» é obrigado a mudar de partido para o penalizar, ou a «engolir um sapo» mas votar no partido que prefere. Mais, enquanto nos círculos uninominais não há pluralismo na representação, nem paridade de género, pois só um deputado é eleito; nos pequenos círculos plurinominais há pluralismo e paridade. E, mesmo havendo um círculo nacional de compensação dos desvios à proporcionalidade, os uninominais criam uma dinâmica bipartidarizante (exceto se for exigida maioria absoluta em duas voltas). Porém, quer o voto preferencial, quer o voto em círculos uninominais potenciam a personalização do mandato, a ancoragem territorial dos deputados e uma menor disciplina de voto no Parlamento (logo, maior «estima» dos eleitores pelos deputados: ver David Beethem, em The Future of Representative Democracy, 2010).

Resumindo, mesmo as reformas eleitorais desejáveis (abertura das listas/personalização do mandato do deputado, manutenção da proporcionalidade, reforço da governabilidade com incentivos à cooperação interpartidária, moção de censura construtiva), ou seja, aquelas que permitiriam reforçar a componente democrática do regime, terão sempre um alcance limitado, dado a multitude de fatores por detrás da crise das democracias. Será sempre crucial mudar também o enquadramento europeu e limitar a globalização.

Politólogo, ISCTE-IUL (

andre.freire@meo.pt

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